POV: Capitão Nascimento
Nunca me importei com dar tiro em cabeça de vagabundo. Essa trocação forçada onde todo mundo tinha que ficar brincando de gato e rato era diário já, e se alguém fosse morrer naquele dia, não seria com certeza ninguém da minha equipe.
Nos últimos tempos, desde o último treinamento que realizei com os novatos, comecei a procurar alguém para me substituir, pelo medo crescente de estar perturbado. O barulho da M400 ecoava na minha cabeça toda noite, e eu que nunca tive que tomar nem remédio pra gripe, não conseguia mais sobreviver um dia sem o remédio arranjado por um clínico geral qualquer. A única coisa que conseguia me acalmar, me tirar do frenesi diário causado pela adrenalina depois das operações de rotina, era a merda de uma dúzia de comprimidos que eu já não precisava nem mais de àgua pra engolir. É uma merda tu se sentir impotente depois de tanto tempo de batalhão, de comando de operação, mas eu não conseguia mais lidar com essa porra toda sozinho já fazia tempo.
- Capitão! O senhor têm que ver isso aqui!
Disse Mathias, que mesmo gritando e fazendo voz de macho, era o homem mais culto que eu conhecia. Se não fosse pela farda preta suja de massa encefálica, eu diria que ele é um pastor evangélico. Tirado de meus devaneios cada vez mais frequentes, e em momentos inoportunos como agora, que enquanto eu pensava na minha vida, minha equipe tava trocando tiro, começo a andar em direção à equipe que se escora mais para o final da vielinha que estávamos abrigados, em direção à rua principal.
- Desembucha, Mathias. Te avisei que hoje quem ia comandar a equipe era você, não quero saber de merda nenhuma, resolve sozinho.
Já preparado para a comunicação de alguma merda gigantesca que o aspirante fez, pedindo auxílio pra resolução, eu cuspo as minhas palavras, enquanto aponto o dedo na cara dele, como se fosse uma retaliação prévia. Como sempre, ele assente com a cabeça, mantendo o semblante calmo mesmo com a minha falta de compaixão. Porra! Quer carinho, acolhimento e simpatia à uma hora dessas? Comecei a ficar irritado já antes mesmo de descobrir o que é que ele queria.
- Capitão, estamos fazendo uma progressão boa. Falta duas ruas pra chegarmos no ponto indicado pelo senhor lá no batalhão. Chamei o senhor até aqui para te mostrar isso aqui.
Enquanto Mathias fala, ele pega um segundo fuzil, que até então estava jogado no chão, deixando o dele pendurado para trás, sendo segurado pela bandoleira. Não entendi de primeira, e daí que ele tinha dois fuzis, porra? Quer um parabéns? Fico olhando pra ele com o meu semblante mais calmo, como o de quem dá permissão para que ele continue falando. Indico com um leve movimento de cabeça pra ele continuar, não tinha entendido ainda onde ele queria chegar.
- Essa arma daqui é igual às nossas, Capitão. Têm um policial metido na parada.
Aquela frase dele me atingiu como um soco no nariz. Não. Na verdade, um soco teria feito eu me importar menos. Aquela frase me atingiu como a porra de um tiro de FN. Ficar com a mão pingando de suor já era costume, ainda mais no sol do Rio de Janeiro, e a porra da farda toda preta. Mas eu comecei a sentir, ou ao menos, comecei a notar a sensação que tinha algo na minha garganta, meu peito começou a apertar como se eu usasse uma farda tão nova que não tivesse laciado ainda, as duas armas que Mathias mantinha perto de seu corpo se tornaram quatro, e uma sensação mista de medo de morrer naquele exato instante ou então de perder totalmente a sanidade me invadiu por completo. Ainda com a sensação que eu iria engasgar com as minhas próprias palavras, eu me viro pra equipe Alfa, que é a que eu comandei no último ano inteiro, e grito:
- Equipe Alfa! Preparar para retirada!
Mathias me olha confuso, mas com a lealdade de um cachorro, assente com a cabeça, sem fazer nenhuma pergunta direcionada à mim, só fazendo um sinal com a mão para a tropa, que estava temporariamente, de caráter excepcional sob seu comando, preparar para a retirada.
- Mathias, leva essa merda contigo. Manda alguém checar pra ver se tem outra igual com os vermes ali.
Mathias puxou o primeiro homem à sua disposição, e repassou o comando. Então todo mundo imediatamente começou a se movimentar, e independente do quão confuso eles estavam, ninguém iria me perguntar porra nenhuma.
O aperto no peito estava enlouquecedor, mesmo suando que nem a porra de um porco eu sentia calafrios, e minha mão não conseguia ficar mais parada no fuzil que eu carregava. Eu tremia quase que completo, debaixo de um sol de 40 graus. A gola da minha farda parecia que estava mais apertada que o normal, me sufocando de um jeito diferente do que eu estava acostumado. Eu segurava e mexia nela, pra tentar dar um alívio à mim mesmo, mas não conseguia. Minha respiração estava extremamente pesada, me faltava ar. A sensação de estar vivendo em terceira pessoa, no automático, já era quase padrão pra mim, então quando cheguei na viatura, só entrei no carona direto, queria ir embora daquele lugar.
Mathias entrou depois de mim. Eu realmente não fazia ideia de quanto tempo tínhamos gasto descendo todo aquele caminho, e a paz no rosto de Mathias, sem sinais de cansaço, não me ajudava em uma possível estipulação. Quando Neto entrou no carro, no banco de trás, Mathias deu partida no carro. O som me assustou, algo estava amplificando todos os barulhos ao máximo, e eu ainda sentia que ia enlouquecer e perder o controle a qualquer momento. Enquanto Mathias dirigia mais rápido que o normal, com o giroflex ligado, quebrando a minha expectativa de gastar no mínimo uma hora no trajeto, Neto olha pra mim, confuso. Vejo seu reflexo pelo espelho exterior da viatura, e sei que ele vai abrir a boca dele pra me tirar mais do sério ainda, como se fosse possível.
- Capitão, o senhor tá bem?
- Eu pareço bem para você?
A ironia na minha voz dizia tudo. Eu não queria falar sobre. Eu não queria pensar sobre.
Meu peito doía de um jeito que eu tinha certeza que aquilo era um infarto.
- Mathias, me leva pro Hospital.
Cuspi as palavras como de costume, não por soberba ou ignorância como costuma ser, e sim por falta de um modo melhor de falar. Eu tinha certeza que ia morrer.
- Senhor, a UPA sempre tá lotada, sem contar que provavelmente vão levar os sobreviventes e machucados pra lá.
Respondeu o Mathias, racionalizando até a porra de um pedido meu.
- Então me leva pra porra do Central!
Central é o apelido que nós damos ao Hospital Central da Polícia Militar do RJ. Lá, é certo que sempre têm pronto-atendimento, por mais que seja um pouco longe da onde estávamos, era ainda a melhor decisão a se fazer.
Eu fecho meus olhos, e em um instante que pareceu não levar mais do que duas piscadas, sinto o carro parar. Ou tínhamos chegado ao Hospital, ou eu estava prestes a encontrar todos os que eu já tirei a vida. Qualquer uma das opções resolveria o meu problema. Eu não queria continuar sentindo isso.
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Notas da escritora
Olá!, Prazer, eu sou a Aria Mudd. Essa fanfic foi planejada do início ao fim, então por mais que ocorram algumas mudanças ao longo da história, já estamos com um destino traçado!
Obrigada por ter lido até aqui, obrigada por todos os upvotes, comentários e interações que aparecem em minha aba de notificação e me deixam extremamente feliz.
Os capítulos iniciais podem parecer mais parados por conta de um desenvolvimento no formato slow burn, mas depois que engata fica até difícil de acompanhar! kkkk.
Espero que vocês gostem,
Aria.
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Sob a Farda, o Caos.
RomanceUma história onde Roberto Nascimento, capitão do BOPE, cruza o caminho de Rafaela, uma recém-formada em medicina que atua como psiquiatra no Hospital Central da Polícia Militar. | Dark Romance | Tropa de Elite | Capitão Nascimento | Psiquiatria | H...