Sob a Farda, o Caos.

Tentação

Não veio sobre vós tentação, senão humana; mas fiel é Deus, que vos não deixará tentar acima do que podeis; antes, com a tentação dará também o escape, para que a possais suportar.

1 Coríntios 10:13

POV: Roberto Nascimento

Teria eu vivido todos os anos lutando contra mim mesmo ao longo de minha vida para estar aqui hoje?  Colocar uma pessoa, uma MULHER, acima de minhas prioridades, dos meus gostos pessoais, da minha paz? Perguntei-me, enquanto andava com Rafaela em meus braços.

Quando decidi entrar na polícia, eu tinha apenas um sonho: escapar do inferno que chamava de casa. Lembrando de tudo o que tento esquecer ao longo de todos esses anos, percebo que nunca realmente tive uma família. Meu pai e minha mãe eram como dois astros, girando em torno de seus próprios mundos, perdidamente apaixonados entre si e pelos filhos, exceto por mim. Eu era o satélite esquecido, orbitando à margem de suas vidas. Sendo o filho mais velho, tudo recaía sobre mim. Virei um saco de pancadas quando tinha apenas dez anos e meu pai descobriu que na bebida encontrava a paz que lhe fugia sóbrio.
Uma noite, após passar a madrugada inteira bebendo no bar, ele chegou em casa com a fúria de um titã, determinado a descontar sua frustração na minha mãe. Desde criança, eu carregava um espírito de justiça irrevogável e, mesmo sabendo que seria em vão, defendi-a. Para nada, vale dizer. Nem um "obrigada" recebi depois de ter dois ossos trincados pelo golpe brutal de um pedaço do portão de ferro. Nem um "eu te amo". Meu pai batia e xingava com palavras cujo significado eu nem conhecia, e naquele dia ficou claro que eu seria o bode expiatório. Aguentei agressões até meus dezesseis anos, quando decidi que não ia mais tomar porrada por pessoas que não compreendiam o sacrifício que eu fazia.Todo sábado de manhã, meu pai chegava bêbado, e eu já o esperava na frente de casa. Muitas vezes perdi a consciência enquanto ele me batia, acordando sozinho no meio da rua. Os vizinhos ignoravam: cidade pequena, família respeitada e amada, patriarca militar e filho rebelde. Eu merecia cada soco e ponta pé, aparentemente, até o dia em que não mereci mais.

Decidi sair de casa, morar onde quer que fosse, estudar e ir para bem longe dali. Morei de favor de casa em casa, trabalhava de madrugada, estudava na escola de manhã, e de tarde até a noite eu estudava para o vestibular. Sonhava em fazer Direito e ajudar crianças que nem eu, e no fim, acabei no BOPE, depois de estudar cinco anos sobre como tudo o que fazíamos era errado. Foda-se os direitos humanos, inclusive.

Eu cresci através da dor. Tudo o que conheço é o sofrimento, a violência, a brutalidade. Do dia para noite, tudo o que fiz nos últimos trinta anos começou a cobrar o seu valor, e agora estou onde estou, andando desarmado numa rua escura na madrugada vazia do Rio de Janeiro, procurando meu carro, com Rafaela pendurada em mim.

Tudo o que aconteceu hoje foi um erro, do início ao fim. Tal pensamento já estava ficando repetitivo, mas eu sempre fazia merda mesmo, não é uma mera repetição sem sentido... Deixar ela sozinha com Valéria, ignorar seu silencioso pedido de ajuda pelas mensagens, beber com ela, ser um covarde e não admitir para mim mesmo meus sentimentos, e agora isso, a pior consequência de todas. Era óbvio que ela não saberia lidar com a minha rejeição, era óbvio que ela ia descontar na bebida, e era óbvio que se algo de ruim fosse acontecer naquela noite, seria com ela. Não tenho certeza se ela havia sido drogada ou o que havia acontecido, honestamente, para a saúde de todos que estavam na festa, é melhor eu nem pensar.

Já no restaurante, onde a sobriedade já não estava mais presente entre nós, comecei a perceber a profundidade de meus erros. Foi da mais pura irresponsabilidade eu ter aceito vir aqui hoje com ela. Em meio ao zumbido dos sussurros e risos abafados ao nosso redor, sua voz trêmula e doce, dizendo que me amava, ecoava em minha mente como um jingle irritante que não se consegue esquecer.