Rotina

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POV: Nascimento

"Tornei-me insano, com longos intervalos de uma horrível sanidade."

- Edgar Allan Poe

Domingo

O caminho até em casa foi longo, tenso e ao mesmo tempo entediante. O trânsito, mesmo diminuído por conta do horário, ainda estava ali, me impedindo de acelerar do jeito que eu mais queria, sem contar a enorme imprudência que seria dirigir rápido quando eu sentia que meu corpo ia desligar a qualquer momento por conta da exaustão. O sono nem era o maior culpado, analisando bem a situação; O que me quebrava naquele momento era a exaustão mental. Pouco eu corri, pouco eu atirei na noite passada. Todas as incursões que estamos planejando são meramente psicológicas, não temos um alvo, não temos um objetivo, queremos ser vistos, somente.

Quando cheguei no batalhão, ontem, passei no mínimo duas horas trancado na minha sala com Mathias. A primeira meia hora foi basicamente uma sessão de terapia para ele, os dois moravam juntos, compartilhavam tudo, e até então ele não tinha se aberto para ninguém. Não se sentia seguro.

Ele me contou que a equipe Alfa foi de modo muito estranho convocada durante a minha ausência para acompanhar a PM numa incursão desconexa, desnecessária e injustificável. Chegando lá, houve um tiroteio inexplicável, como se tudo estivesse planejado por alguém e após a PM tomar a frente, as equipes do BOPE, como esperado, ficaram com sangue nos olhos de serem passados para trás por um bando de verme que não sabe de nada sobre subir a favela de maneira estratégica, rápida e letal. E é aí que tava o problema, normalmente a PM não conseguiria mesmo fazer essa façanha, então isso denotou que provavelmente eles foram permitidos de tomar a frente, por alguém, por algo. Coincidentemente, as equipes do BOPE continuaram sendo alvejadas, mas sempre com erros grotescos de mira. Nenhum homem sofreu com nenhum disparo, até o capitão Fábio, um PM metido com tudo de ruim, comandando a equipe Alfa (como se existisse homem além de mim capaz desse feito) passou uma ordem grotesca, fazendo o Neto, apressado como sempre, correr atirando em direção aos marginais que alvejavam o grupo novamente. Ele, sem proteção, levou um tiro na cabeça, vindo de cima, com a bala saindo pela boca, quase.

O velório foi de caixão fechado.

Mathias disse nunca ter visto tanto sangue, tanto cérebro saindo pelos ouvidos, e nunca ter visto uma pessoa morrer tão rápido. Não houve tempo de fazer nada, além de se reposicionarem e tentarem um contra-ataque, que não deu em nada. No mesmo instante que os disparos cessaram, a equipe, indo contra as ordens do capitão Fábio, pegaram o corpo e desceram. Entraram em contato com o comandante do batalhão, explicaram a situação e foram perdoados de antemão pela insubordinação. Eu odeio quando os meus subordinados me desrespeitam, e isso realmente não aconteceria comigo, mas eu fico feliz que eles tenham sido teimosos e mantido a honra em primeiro lugar, independente do que eles foram fazer lá.

Mathias não deixou barato, fez o inferno para levar o corpo direto para o IML, conversou com o médico legista e pediu uma análise minuciosa. É claro que o médico ficou meio receoso no início, dificultando, fazendo o Mathias levar um exemplo de cada bala possível que o BOPE e a PM tinham acesso, mas depois, com jeitinho, ele conseguiu que um bom exame balístico fosse feito. Assim, foi descoberto que o tiro foi dado provavelmente de uma arma igual às armas que nós temos acesso, como imaginado.

Neto pode não ter sido morto por um PM, mas a PM matou ele.

As incursões não foram pra matar quem atirou, não foram para apreender a arma que disparou o tiro que o atingiu. Foram única e exclusivamente para os bandidos de farda e os com o bolso cheio de drogas pra vender saberem que nós estamos ali, espreitando ambos, prontos para reagir.

Sob a Farda, o Caos.Onde histórias criam vida. Descubra agora