Devaneios pagos

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POV: Rafaela Valença

Sempre idealizei que me formaria em medicina, faria residência de psiquiatria, trabalharia em uma clínica na cidade e moraria no interior, numa casa no meio de um campo enorme e verde, onde a minha única preocupação naquele lugar seria se eu dei comida aos meus cachorros ou não.

A dura verdade entrava pela janela, me afastando daquilo que um dia ficou tão próximo de ser minha realidade. Sete horas da manhã e o sol estava tão quente quanto o sol do meio dia. Ao menos, da onde eu vim, nem o sol do meio dia era tão quente quanto o sol das sete daqui. Aquela luz me queimava, o raio de luz que entrava em contato com a minha pele era sentido imediatamente, e eu era obrigada a levantar da cama, seja para fechar as cortinas e continuar dormindo, seja para dar início ao meu dia.

Não, eu não morava numa cidadezinha no interior de Santa Catarina que nem eu sempre imaginei. Eu não era psiquiatra, inclusive, estava bem longe disso. Eu não sou nada mais que uma recém formada em Medicina que conseguiu por sorte um trabalho temporário no Hospital Central do Rio de Janeiro. O meu trabalho nada mais é que por 120 dias, inicialmente, ficar no lugar de uma psiquiatra que está de licença especial, grávida. Eu sei, eu sei. Não tenho residência, mas eu tenho algumas boas especializações. Tá, eu sei que isso ainda não é válido, mas eu precisava muito de um emprego e eles precisavam muito de uma médica que aceitasse ganhar bem menos que a média. Nem carteira assinada eu tenho, o contrato foi de boca, uma vez que provavelmente teria algo de ilícito no meio...
Bom, o que eu tenho que fazer, resumindo, era basicamente atender os pacientes da psiquiatra (sim, ela é psiquiatra de verdade, diferente de mim), manter o que ela já tinha feito anteriormente funcionando, aumentar algumas doses, diminuir outras, coisa básica. No Hospital Central, como a maioria dos pacientes que eu atenderia seriam militares, dificilmente eu atenderia algo diferente de crises de ansiedade, pânico, depressão... Nisso pelo menos eu me garantia, passava medicações comuns, quando precisava iniciar um tratamento novo, marcava a próxima consulta pra daqui a um mês e assim meus dias passaram nas últimas semanas. Lentos. Sem nada de diferente. Emergências, por mais que comuns naquele Hospital, dificilmente eram repassadas a psiquiatria, e quando era realmente necessário, dificilmente me chamavam. O clínico geral que atendia as urgências e emergências gostava de resolver tudo sozinho, deixando nenhuma adrenalina pra mim.

Eu divago muito ao longo do meu dia, ao longo de minhas tarefas... Me ajuda a continuar sã em meio ao calor enlouquecedor do Rio de Janeiro. Quando notei meu relógio, já era oito horas, o que me fez sair do transe que me encontrava, presa em meus próprios pensamentos. Não é porquê eu passava grande parte do meu dia devaneando que eu não fazia minhas obrigações, e felizmente, eu estava pronta, com a bolsa em cima da mesa, louça lavada na pia e chave na porta, só esperando a mensagem da minha carona para descer do meu apartamento e ir para o lobby do prédio. Viver no automático, por mais que não seja visto com bons olhos, era uma estratégia boa para mim. Me mantinha viva, afinal, enquanto eu precisava viver coisas que eu não gostava, como trabalhar, arrumar a casa, podia me distrair com a minha própria mente. Antes mesmo de acabar com a minha linha de raciocínio mental, meu celular vibra na minha mão.

- "Roseane - HPM: Tô aqui na frente, cadê você?"

Era uma mensagem da Roseane, a secretária do Hospital. Desci em menos de dois minutos e entrei no carro dela. Não era bonito, muito menos espaçoso, mas me poupava de 20 minutos caminhando debaixo de sol. Mesmo morando perto, num apartamento bancado pelo Central, era uma boa caminhadinha até chegar lá de fato.

- obrigada Rose! até mais tarde!

Eu falo da maneira mais gentil que eu poderia falar, descendo do carro assim que chegamos no Hospital. Ela costuma ser fechada com todos, e eu gosto que as pessoas gostem de mim. Deixa meu ego intacto e até feliz, muitas vezes.

Sob a Farda, o Caos.Onde histórias criam vida. Descubra agora