Gabriella

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POV: Rafaela Valença

Eu finalmente tinha plena certeza que estava segura.

Assim que saímos da vista de Roberto, o semblante amigável, feliz e risonho de Gabi mudou para um semblante que se assemelhava a cara que minha mãe fazia quando estava preocupada comigo.

A Gabi estudou comigo, nos conhecemos quando eu tinha 19 anos e ela 22, e desde aquele dia, na faculdade, nunca mais nos separamos. Ela entrou em medicina já estudando psicologia, e de alguma forma, não sei como, conseguiu conciliar os dois cursos. Eu tinha dificuldade de estudar em uma só, nunca entendi como ela mantinha duas faculdades funcionando e ainda por cima tinha um ótimo desempenho em ambas. Ela sempre foi uma pessoa que passou a imagem de calmaria. Se eu era a tempestade, ela era o arco íris mais bonito que o ser humano já presenciou.

Vindo de uma família com valores morais estritos, tinha um senso de justiça irremediável. Ela dificilmente vivenciou alguma situação injusta sem se posicionar, seja sobre coisas bobas como assuntos acadêmicos, seja sobre situações sociais envolvendo seus amigos e colegas. Sempre senti que ela era luz, luz pura. O jeito dela falar, o jeito genuinamente bom que ela tinha, os seus posicionamentos sempre corretos, me lembravam que eu tinha muito a melhorar antes de me tornar uma pessoa realmente boa. Se ela não fosse tão humana, não tivesse posicionamentos tão realistas e muitas vezes até brutais, eu poderia jurar que ela seria a próxima santa a ser canonizada pela Igreja Católica. Ela me lembrava quem eu deveria ter sido.

A sua aparência era também algo que sempre me chamou atenção. Ela, desde que nos conhecemos, se vestia bem em qualquer ocasião. Às vezes, eram oito horas da manhã, tínhamos apenas uma prova para fazer no dia e ela estava usando calça de alfaiataria, salto e uma blusa estilosa, enquanto eu usava minha camiseta do deftones e calça flare, junto de meu all star podre, rico em histórias (porque beleza em si faltava). Sua pele tinha uma cor linda, que eu nunca poderia ter nem em cinco gerações se bronzeando diariamente, morena, mas não bronzeada. Ela não tinha o costume de torrar no sol, acho que por conta do medo de ter câncer de pele ou qualquer outra justificativa boba que aprendemos na faculdade, vilanizando o sol. Ao contrário de mim, que além de ficar com um tom de pele feio rosa quando pego sol, sinto dores bizarras, tenho certeza que ela ficaria mais perfeita ainda, da cor da mais linda amêndoa. O seu cabelo, atualmente vermelho, era tão brilhoso que parecia cereja em calda. Ela tinha cachos lindos antigamente, mas pela correria do dia-a-dia, resolveu alisar, para otimizar seu próprio tempo. Seus olhos, claramente ameríndios, contrastavam com seu delicado nariz, que era fino e reto. Sua boca era grande, naturalmente grande, não tinha nenhum tipo de preenchimento e mesmo assim a sua boca era tão linda quanto a boca de uma boneca, e harmonizava com seus traços femininos. Ela parecia uma boneca Bratz.

Toda vez que eu parava para pensar em nossa amizade e no quanto eu sou abençoada por ter a Gabi em minha vida, me emocionava um pouquinho. Não posso ser desonesta e não dizer que eu sentia um misto de orgulho e inveja dela. Ela fez tudo o que eu sonhava em fazer. Ela era tudo o que eu poderia ter sido, e não fui. Ela acabava de ter sido aprovada na residência em psiquiatria, e logo começaria a atuar realmente, com seus dois diplomas, em psicologia e medicina. Antes de eu decidir realmente por medicina e começar a estudar, meu sonho era psicologia. Desisti porque percebi que sou uma pessoa cara, e o salário que eu poderia ganhar sendo psicóloga não seria o suficiente para pagar a minha felicidade, nunca. Sim, eu sou esse tipo de pessoa. Na psiquiatria eu encontrei o melhor dos dois mundos, aquilo que me fazia feliz, a psique humana, e aquela outra coisa que me fazia feliz (no caso, faz todo mundo feliz, mas poucas pessoas são corajosas o suficiente pra associar felicidade à isso), o dinheiro. Ela tinha sido mais ousada que eu. Seguiu a racionalidade e seu coração. De qualquer forma, o orgulho que eu sentia da minha amiga foda era bem maior que a inveja, que no fim se tornava um combustível infinito, então nunca me senti ameaçada por ela. Eu sei, no fundo do meu coração, que ela é uma pessoa do bem e que nunca faria algo para me machucar, não têm o porquê, então eu não me machucaria e torturaria sozinha pensando nessas coisas. Eu era grata pela nossa amizade, e isso é tudo o que eu focava quando estava com ela. Sem comparações, sem ficar espiralando o que eu poderia ter sido.

Sob a Farda, o Caos.Onde histórias criam vida. Descubra agora