Cap XXV - Sacrifícios

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Assim começou o fim de Palmares. Ganga Zumba acabou por, relutante, aceitar o acordo da coroa portuguesa, representada pelo governante da capitania de Pernambuco, mas antes que pudesse partir para a capital e assinar o contrato, o rei do quilombo foi envenenado, traído por seu povo, que temia pela própria vida.

Um dos conspiradores era Zumbi, que assumiu o trono.

Durante 15 longos anos, Zumbi governou o quilombo, resistindo bravamente contra os portugueses, que todo ano tentavam uma nova expedição contra ele, cada uma mais forte que a anterior. Nos primeiros 12 anos, a vitória da resistência era incontestável.

No décimo terceiro ano, Andalaquituche, um dos mocambos de Palmares, caiu.

Acotirene, Aqualtune, Osenga, os mocambos caíam um após o outro. A derrota era iminente, alguns poucos permaneciam na Cerca Real do Macaco, a última e mais poderosa fortaleza de resistência.

Durante três longos anos, Zumbi e sua esposa Dandara lutaram ao lado de seus mais fortes guerreiros, mas a falta de suprimentos e a constante pressão dos bandeirantes fez com que eles fossem forçados a deixar a fortaleza, fugindo para longe. Embora tentassem se esconder nas densas matas do sertão nordestino, muitos de seus companheiros foram pegos e mortos pelas forças expedicionárias, até que menos de dez sobrassem.

Zumbi viu, novamente, todos seus amigos morrerem por sua culpa, observando os erros de seu eu do passado serem cometidos outra vez, em sua alucinação.

No momento, ele via sua versão mais nova se esconder de uma tropa, acompanhado de Dandara, afastados do restante do grupo. Ele, a versão de si que os outros não podiam ver, observava o diálogo que há muito havia decorado, sua última conversa com Dandara.

– Eles nos cercaram feio dessa vez – disse ela, enquanto estancava um sangramento em seu braço direito.

– Sinto muito, Dandara – disse a versão mais jovem – não queria que terminasse assim.

– E quem decide que é assim que termina? Ainda podemos fugir, o grupo não está muito longe daqui.

– Se formos até eles agora, eles vão nos seguir e a caçada continua – falou enquanto observava ao redor. Eles estavam escondidos atrás do tronco de uma árvore, enquanto o bando de expedicionários os procurava ao longe.

– Essa é a parte que você se entrega – disse o fantasma de Palmares, observando seu eu do passado, assistindo a uma certa distância.

– Acho que devo me entregar – disse o mais jovem – assim você vai ter tempo de correr.

– Nem pense nisso! De onde você tira essas ideias?! – disse Dandara, quase batendo nele – Se eles te pegarem, vão te matar na certa! Vamos só correr! Ainda podemos fugir!

– E até quando vamos continuar correndo? – disse Zumbi, segurando as mãos dela – Essa não é a vida que eu desejei para você. Quando me rebelei contra os brancos, eu não achei que eles fossem ser tão insistentes. Eles são mais teimosos do que eu pude imaginar.

– Mas como eu vou viver sem você?! – disse Dandara, quase aos prantos.

– Você precisa ser forte, por nosso povo – dizia ele, enquanto encostava sua testa na dela – agora corra, eu vou ganhar um tempo para vocês.

Dandara estava congelada no chão, com lágrimas correndo pelo rosto. Ela pulou em seu marido e lhe deu um abraço demorado e caloroso. Quando o soltou, correu sem olhar para trás, pois qualquer coisa que fizesse a faria voltar.

Zumbi encheu o peito de ar, deu um passo para o lado da árvore e começou a andar em direção aos bandeirantes, que logo o perceberam.

– Você está com medo – disse sua versão mais velha, enquanto caminhava ao seu lado – está tudo bem, não vai ser demorado. Primeiro vêm os tiros – ao terminar a frase, três disparos de bacamarte acertaram o peito do mais novo, fazendo-o parar, mas não cair.

Os bandeirantes logo chegaram, dois deles o seguraram pelos braços, enquanto ele descia aos joelhos.

– Ela teria sobrevivido, sabia? – disse o mais velho, observando toda a cena – Dandara nasceu em Palmares. Ela teria permanecido livre, salva da escravidão pelo contrato de nosso tio. Mas você não... você não tinha certeza. Você nasceu em Palmares, mas foi capturado e depois fugiu. Você não sabia se seria perdoado e, desesperado, recusou o acordo.

Ele se abaixou próximo ao corpo que respirava ofegante, mesmo que ele não pudesse enxergá-lo. Outro bandeirante se aproximava deles, com uma faca em mãos.

– Você pôs sua liberdade acima da segurança dos outros. Por esse desejo egoísta, você matou milhares, quando podia ter salvo centenas. O seu medo matou sua própria esposa...

O bandeirante se aproximou e, com sua faca, cortou fora a cabeça de Zumbi, deixando-a cair no chão. Seus olhos se encontraram com os de sua versão mais velha, mesmo que ele não visse nada.

– Seu medo foi a causa da sua morte, o medo do desconhecido... o medo da morte... você vai para o nono inferno agora. Treine. Não pare de treinar, e se algum dia um homem com olhos de cores diferentes aparecer para você e pedir para você lutar em um torneio, aceite – ele se levantou, encarando sua cabeça – seu medo pode ter matado milhares... mas sua capacidade de superar esse medo vai te levar ao Ragnarok... onde você vai matar a morte, e salvar bilhões.

Ele olhou para cima.

– E talvez... se perdoar no processo...

Sua visão começou a ficar branca. Aos poucos, ele recobrava a consciência, sua primeira visão foi o chão da arena Valhala, e seus tijolos ladrilhados danificados pelo seu embate com Ah Puch.

Em sua cabeça, uma voz gritava, mas suas palavras não eram compreendidas. Depois de alguns segundos, ele conseguiu entender o que era dito.

Cuidado!!! Em cima!! - gritava Sigridrifa.

O guerreiro olhou para cima, onde Ah Puch erguia sua foice, pulando cerca de 50 metros acima do chão da arena. O deus da morte rotacionava sua foice em alta velocidade, ateando fogo à mesma, uma chama verde macabra que se estendia por todo o cabo, chegando ao ponto de queimar a mão apodrecida do próprio deus.

A chama aumentava de tamanho a cada segundo, ela parecia um meteoro ou até mesmo o sol. Esticando o corpo para trás, o deus da decadência arremessou a foice com tudo em direção ao chão.

Chichén Itzá: Poço dos Sacrifícios!!

O meteoro verde caiu no meio da arena, criando uma enorme onda de choque. Zumbi pulou para trás, mas foi pego na explosão e jogado através do campo de batalha, atingindo a parede da arena.

Ah Puch caiu do céu, pousando em cima do cabo da foice, que ficou encravada no chão, no centro da cratera que o ataque criou

Zumbi deslizou pela parede, caindo de joelhos, mas se levantando rapidamente.

- Você está bem?! - perguntou Sigridrifa - O que houve, você desmaiou!

- Estou bem, acho que o dano foi demais, acabei apagando -  respondeu em sua mente - O que aconteceu?

- Acho que ele percebeu sua ausência. Você ficou fora por uns cinco segundos, foi tempo o bastante pra ele pular e preparar aquele ataque. Você está melhor agora?

A uma distância, Ah Puch observava ofegante, esperando um movimento de Zumbi.

O guerreiro da libertação estralou o pescoço e começou a rodar suas correntes ao lado do corpo.

- Agora eu acordei - disse ele, enquanto começava a andar para a frente.

Ragnarok - A última EsperançaOnde histórias criam vida. Descubra agora