22- O palhaço

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Acho que ter deixado minha bicicleta em casa para conseguir mais tempo até o hospital não foi o suficiente. Porque mesmo com os pés cansados, meus pensamentos ainda pareciam uma desordem.

Eu continuava não sabendo como organizar o quebra-cabeça entre o que aconteceu com a minha mãe e como isso está ligado ao Épicus. E a Mencia.

Eu me sinto acorrentada a uma história que mal conheço. A um fantasma de alguém, que parece ter carregado com si muito mais do que eu e meu pai. E talvez, bem no fundo, eu já soubesse. Talvez a Eva Sades bêbada esteja mesmo certo. Talvez ela tenha tomado por mim a atitude carecida. E eu e Mencia não sejamos para ser. Desde o começo. Eu já disse, ela é do circo e eu odeio circos. Ela é trapezista e eu odeio altura. Ela é Mencia Épicus e eu..

Meu Deus, é tarde demais. Agora meu coração já bate em sintonia menciana. E me resta apenas lidar com o que as coisas são.

Porque sem Mora Mor, sem correio do amor e sem minhas buscas incessantes pela notícia de jornal, me restou apenas a realidade. A realidade a qual eu tentei engolir essa semana me ocupando com tudo isso. E agora sou eu e tudo que venho evitando. Eu e as respostas. Eu e Mencia.

E estar diante de uma visão que parece engolir todo meu lado pensante não ajuda em nada. Porque nossa, Mencia fazendo um teatro de marionetes para as crianças no hospital é a coisa mais fofa do mundo. O sorriso meigo, o bonequinho com roupa de palhaço e os dedos delicadamente entre as cordas.

Vou culpar essas coisas pelo devaneio de que ela realmente seria uma boa mãe. De que nós poderíamos ser. Nós e um futuro. Como uma possibilidade.

Meu Deus Eva Sades, acorda! Você está confusa e com raiva. Lembre-se que a garota na sua frente pode estar escondendo coisas de você há todo esse tempo. Lembre-se que ela apareceu segunda na escola com o mesmo sorriso cínico de todos os dias, como se nada tivesse acontecido, como se para você sorrir depois daquela noite não parecesse doer.

Não esqueça também que ela bebeu no primeiro encontro de vocês. Porque, surpresa, ela estava com a Carola antes. Vê se lembra também de que elas já se beijaram. Lembre de tudo. E lembre-se torcendo muito para que bem lá no fundo isso mude algo. Que isso mexa os pauzinhos nesses sentimentos ridículos e infantis e sinceros e seus.

— Olha, que legal! — A menininha com fantasia de super-heroína apontava para a marionete de Mencia, que mexia o ombro de um lado pro outro, como se estivesse dançando.

Me sentei no chão da brinquedoteca hospitalar ao lado das crianças que assistiam fascinadas o boneco de um palhacinho de madeira, controlado por uma trapezista de verdade.

Presa nas cordas, a marionete de fios vermelhos, gravata borboleta e de um nariz que se mexe sozinho, faz de tudo para recuperá-lo. Se pendura, corre, cai, vai aos prantos. E o nariz sempre escapando das suas mãos. A risada das crianças ecoam nas tentativas frustradas do palhaço, que acaba sempre sem nariz.

Mas quando finalmente se contenta, e faz com as mãos de boneco para que o nariz vá, que ele dá fim a sua fuga. O nariz passa a assistir admirado o palhaço sentado no banquinho de madeira. E então percebe que eles são um só. O homem e ele. O palhaço.

Devo ter aplaudido mais alto que todos da sala quando Mencia encerrou a apresentação. As crianças levantaram agitadas, os dedos curiosos querendo conhecer no toque a marionete. E Mencia explicava, as deixava segurar e perguntarem o quanto quiserem.

Todos os brinquedos da sala pareciam nem existir, o verdadeiro fascínio era por um boneco, ao meu critério nem tão bonito, mas que parecia ter ganhado vida diante dos nossos olhos.

Eu sempre me incomodei com a mentira do circo. Ninguém nasce palhaço ou faz mágica de verdade. Não tem como cortar uma mulher ao meio, nem fazer um cara cuspir fogo (caso isso ainda envolva eles com vida). E mesmo assim as pessoas se fantasiam com aquilo. Se deixam levar por uma falsidade paga e bem encenada. Porque é uma mentira bonita. Muito bonita. Do tipo que te faz tanto desejar não que seja, até que ela enfim perde aquilo que fazem as mentiras. A descrença.

Sáfico | Cartas de AmorOnde histórias criam vida. Descubra agora