2- Foi mal, prô

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Eu não conseguia enxergar a novata de jeito nenhum, mesmo sabendo que bem no meio do bolo dos alunos mais detestáveis da minha sala, lá estava ela.

Aposto que a coitada estava sendo esmagada pela turma de Ana e Tereza, que a rodeavam como coiotes à espreita.

Embora as Menzes e Vincente Rio cobrissem quase todo o meu campo de visão, ainda era possível ver Vitor (e seus 1,90 de altura), gesticulando de maneira expansiva sobre a menina. Ele é sempre assim, sem noção de espaço e de bom senso.

Só de pensar em mais uma integrante do lipstick meus olhos se reviraram involuntariamente.

— A única coisa que to vendo é a cara cínica de Vitor. Igual a todos os outros dias, infelizmente. — falei desapontada.

— Cara cínica e linda. — Um sorriso surgia no canto da boca de Pietro.

— Não começa. — Melina abanava a mão na frente dele, que fazia a maior cara de sonso apaixonado encarando Vitor.

— Acorda, Pietro! — Dei um empurrão em seu ombro, tentando o fazer recobrar a realidade — Daqui a pouco é a prova de matemática. Não vai perder a concentração antes mesmo dela começar, né?

— Prova?! — Melina e Pietro exclamaram em sincronia.

— Caraca, vocês não mudam mesmo.

Neusa leciona para minha turma desde que eu entrei nessa escola, e ela já devia beirar aos sessenta. Acho que ela deve ter até mais idade que alguns idosos das casas de descanso Menze.

Aposto que todos esses anos foram os responsáveis por ela ter se transformado nessa máquina de rigidez e severidade que nos dá aula todos os (não muito) santos dias.

Sério, essa mulher não é normal. Existem rumores de que ela seja uma uma alienígena ou uma espiã infiltrada desde quando ela dava aula pra minha mãe. A teoria do momento é de que ela não transa desde essa época, e por isso o mau humor.

Talvez esse falta de sexo tenha aguçado outros sentidos. É bizarro, os ouvidos dela são capazes de escutar com absurda precisão qualquer barulho de cola na prova. E aí... Já era. A mulher não hesita em arrancar a avaliação das mãos de quem for e circular em toda a folha um gigante e vermelho zero.

Nunca me esqueço do dia que Vitor se ferrou. Se eu pudesse escolher uma única data para ser feriado nacional, seria essa.

E por falar em um dos diabos... A professora de olhar fatal e corpo esguio cruzou a porta, fazendo todo mundo sentar no mesmo instante nas suas respectivas cadeiras.

Ela deu um "bom dia" frio, seguido de um "boa sorte" que honestamente mais se parecia com uma ameaça. E em seguida, entregou as provas  começando  pelo lado direito da sala. Vi, conforme ela passava entre as mesas, que a garota nova estava sentada na primeira cadeira da fileira ao lado da minha.

Não consegui evitar a expressão boquiaberta. A menina tinha o cabelo mais curto que muitos garotos da escola. E também bem mais estiloso. O corte mullet era de dar inveja nos meninos que cortam na barbearia do "Cortes Sussa". Só pelo nome já dá pra imaginar, né?! Nunca esqueço do dia que Vincente Rio chegou na escola com um rombo na cabeça.

Mesmo sabendo que estamos no século 21 e que não deveria ser uma surpresa ver uma garota com o cabelo curtinho.  Eu não conseguia fingir habitualidade. Afinal, em Vicência, nenhuma das meninas tem esse tipo de corte ou a veste a camisa de uniforme que facilmente caberiam duas dela.

As garotas daqui não se parecem em nada com aquela garota. E falo isso com a certeza do pouco que vi, já que fui obrigada a virar atordoada os olhos de volta para minha mesa.

Achei que tinha visto uma assombração. Infelizmente foi algo pior - a Neusa.

No momento em que a professora deitou a folha da prova sobre minha carteira, Melina sussurrou atrás de mim "Já sabe". E sim, eu já sabia.

Tudo começou em uma avaliação que iria decidir se ela e Pietro passariam comigo para o ensino médio. Eles precisavam tirar no mínimo oito e alguns quebrados. E após um ano inteiro de sucessivas notas que dificilmente beiravam a cinco,  parecia quase uma causa perdida.

Mas eu acreditava neles. E realmente me empenhei em ajudar os meus amigos. Dei aulas para os dois durante semanas. Interrompi a leitura do clube do livro que tenho com Seu Tadeu. Inventei todas as dinâmicas cabíveis para tentar enfiar a matéria de funções na cabeça desses dois. E mesmo assim, os avanços foram mínimos.

Até que em última instância, eles me convenceram a adotar uma medida desesperada em troca de uma câmera kodak que eu namorava a tempos no "Perdidos e Achados" - a melhor loja de cacarecos que já existiu.

O combinado era que eles me entregariam as provas durante a avaliação. E eu teria que resolver as três em um tempo hábil para fazer apenas uma. Neusa é velha (e desocupada), mas não burra. Ela muda todos os números dos cálculos das questões.

Acho que foi um dos momentos de maior nervosismo da minha vida. Eu escrevia tão rápido que minha mão suada fazia a caneta escorregar. Eu realmente achei que Neusa descobriria. Mas não descobriu.

Sendo bem sincera, não sei o que teria sido pior, porque após esse dia eu passei a fazer quase todas as provas de matemática triplicadas. E dessa vez, não seria diferente.

Em mais de dois anos de prestação desse serviço de extremo perigo aos dois patetas que chamo de amigos, o receio em ser pega não diminuiu nem por uma instância. Na verdade, a única coisa que sofreu perda foi os agrados que ganhava pela ajuda. Agora, no máximo, recebo um "obrigado" em troca. Pois é, acho melhor eu começar a rever meus valores. Não os morais, é claro.

Para piorar, hoje eu estava bem mais nervosa que o habitual. E sabendo que o percentual normal de nervosismo Eva Sades já não era lá muito bom, as coisas não tinham mesmo como dar certo.

No momento em que Pietro foi me entregar a prova, o meu lápis escorregou da minha mão, emanando o barulho do choque contra o chão por toda a sala, o que fez a novata virar subitamente para trás.

Ok, outras pessoas também devem ter virado, mas ela era a primeira da fila, então isso chamou mais atenção.

Tipo, bem mais atenção.

Eu estava completamente estática. Os olhos da garota eram tão escuros que se tornava impossível diferenciar a demarcação da pupila do restante da íris. Acho que isso que me fez ficar parada; sem reação. Afinal, quem em sã consciência, sabendo que tem olhos assim, encara alguém?

Quando me dei conta, a professora me analisava com uma seriedade sem igual. O que me fez quase dar com a língua nos dentes e confessar o crime antes mesmo que ela dissesse qualquer coisa. Eu não aguentaria nem mais um segundo dela me examinando com tanto pudor.

Meus lábios descolaram um do outro. Eu estava pronta para contar toda a verdade. Puxei o ar denso que pairava sobre mim, como se estivesse prestes a fazer a confissão da minha vida. Até que a novata se abaixou, pegou o lápis que eu havia derrubado e disse, sem receio algum: Foi mal ai prô, derrubei sem querer.

A sala inteira caiu na risada do "prô".

Mas a professora não disse absolutamente nada. Seu olhar já entregava tudo. As risadas cessaram na mesma iminência em que começaram. E todos voltaram a atenção para as questões de logaritmos. Menos eu. Pietro vai me matar, pensei. Eu não tinha conseguido resolver nenhuma conta da prova dele, porque minha cabeça estava em outro lugar.

 Eu não tinha conseguido resolver nenhuma conta da prova dele, porque minha cabeça estava em outro lugar

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Sáfico | Cartas de AmorOnde histórias criam vida. Descubra agora