Nem um segundo depois do horário exato do 636, o motorista freou bruscamente no ponto. Eu sei, isso seria motivo para qualquer cidadão decente agradecer.
Mas eu, discípula oficial do atraso, sempre me ferro com esse cara. Além do dia que ele nos deixou pra trás na rodoviária de Vorace, teve ainda uma vez que corri três quarteirões atrás dele (que analisando bem é quase Vicência inteira), e ele só parou quando os gritos de "Para ai, motor" da galera do ônibus ficou insuportável.
Agora toda vez que entro no 636, ele me encara de rabo de olho. E hoje não poderia ter sido diferente.
Assim que passei por ele, dei um "bom dia" alegre e ele com um esforço nítido retribuiu com um aceno de cabeça.
Agora, quando a criança entrou com a mãe, pai eterno, achei que ele fosse estourar confetes de tanta alegria. Tirou o boné com a logo de uma oficina da cidade (que coincidentemente é a dos pais de Pietro) e deu para o garoto, que parecia ter ganhado o presente do ano.
O menininho corria entre os assentos com a visão parcialmente tampada pelo boné que caberiam duas cabeças dele. Ele gritava e esperneava, dizendo para mãe que queria se sentar com a menina do cabelo legal, e não com ela.
Escuta bem moleque, você pode aquietar esse teu facho, porque eu que vou sentar com a garota do cabelo legal.
Dito e feito, Mencia sentou na janela, e eu do lado dela. Fingi estar interessada no que vinha da rua para poder assisti-la. Sendo bem sincera, aqueles vidros poderiam exibir o fim do mundo que eu nem perceberia, porque Mencia Épicus tinha os cílios mais perfeitos que já existiram. Que inveja! Eu gasto uma grana com rímel e os meus não chegam nem perto. Além de serem super claros, não são nada curvos como os dela.
A dona dos cílios de boneca arrancou da mochila preta o único caderno daquela bolsa cheia de tralha, folheando as páginas repletas de desenhos com rascunhos de bonequinhos parecidos com marionetes.
— Você também faz marionetes?! — perguntei chocada, me aproximando da página.
— Você não pode ver ainda. — Mencia puxou com tudo o caderno para si. Aquela garota estava achando a maior graça da minha cara de tacho. — Primeiro eu tenho que fazer um seu. Você tem caneta aí? — Ela apontou os olhos para minha bolsa. — Ontem alguém me fez quebrar a única que eu tinha.
— Alguém te fez quebrar? — perguntei inocente, entregando pra ela uma com a tampa toda mordida (maldito hábito).
— Sim, uma mordedora maluca de canetas — disse ela, rabiscando a folha despreocupada.
Que absurdo!
— Melhor você tomar muito cuidado com ela, então. Essas são as piores.
— Você acha? — Ela soltou uma risada indecente — Eu gosto.
Pai eterno! Esse motorista é maluco, vive dando essas freadas bruscas de repente. Meu coração quase salta para fora.
Mencia pareceu nem sentir, continuou firme riscando no caderno. O barulho que a caneta fazia nas mãos da trapezista era quase uma melodia. E não demorou muito para eu ser levada por ela.
Sendo honesta, isso é um problema meio preocupante. Eu durmo em literalmente qualquer lugar.
Quando abri os olhos, já estávamos no ponto dos "Perdidos e Achados". Eu sou fã de carteirinha desse lugar. Tem literalmente de tudo. Desde os cacarecos menos usuais, até discos super raros por uma mixaria. Mas tem que ter muita paciência para procurar, porque esse estabelecimento é mais desorganizado que Melina.
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Sáfico | Cartas de Amor
RomanceEva Sades vive em plena monotonia na cidade de Vicência - o lugar onde nada acontece. Até que, para sua supresa, após décadas longe de Vicência, o circo Épicus decide retornar a cidade, agitando todos os moradores, que cresceram aos contos dos espe...