11- Tempestade de perguntas

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Perdi as contas de quantas músicas tinhamos escutado tocar no Perdidos e Achados. Nós passamos o dia entre sacos de batatinhas e caixas e mais caixas de discos que Lena (descobrimos o nome da atendente estilosa) trazia do armazém. Infelizmente nenhuma daquelas capas continha o nome de Cecília Sartre. Sério?! Esse povo perdeu mesmo a cultura?

— Que saco! Desisto — reclamei, me jogando no tapete.

— Não tem mais nada que ela gostaria? — Mencia tinha uma expressão pesarosa, o que me deu vontade de fazer ainda mais drama.

— Nada no meu alcance... — Aposto que eu estava fazendo a maior cara de cachorro sem dono, enquanto a trapezista entrelaçava os dedos nos meus fios, acariciando meu cabelo.

— Já sei! — A garota levantou em um pulo, me arrancando pelo braço  — Você não falou que ela gostaria de um toca-disco? Eu vi um quando a gente entrou.

Que saco! Primeiro que eu nem estava querendo mais uma solução, já era o suficiente ter Mencia Épicus fazendo cafuné em mim. E outra, ela não entendeu a parte de que eu não tenho verba pra um toca-disco?! Meu pai amado, esse povo com dinheiro é tenso.

Juro, uma vez Melina ficou incrédula com o fato de eu nunca ter viajado para outro país. Tipo, além dela saber que me recuso a entrar em um avião, ela esqueceu que meu pai não é um dos donos dos empreendimentos de Vicência?! Não que não dê para gente viver confortavelmente, mas também não é como sobrasse para uma puta viagem de fim de ano, igual às que Melina faz sempre com a família. Os pais dela são grandes parceiros de negócio dos Menzes, apesar de eu e ela compartilharmos o ódio mútuo pelas gêmeas.

— Mencia, eu tenho tipo 60 reais. E descontando os 2 sacos da batatinhas, me resta 50. Você tá vendo algo nesse preço? — indaguei sabendo a resposta, já que encarava os toca-discos com etiquetas com pelo menos 3 algarismos.

— A gente tem uma vitrola que vai para o lixo — Lena disse do balcão. — A madeira está muito estragada, não valeria a pena o preço para trocar.

— Vamos ficar! — Mencia anunciou, correndo para o balcão que nem um cachorrinho ansioso.

— Vou pegar. — A garota das roupas bonitas se enfiou mais uma vez para dentro das portas vermelhas.

— O que a gente vai fazer com um toca-disco quebrado? — sussurrei para Mencia.

— Eu vou consertar — ela falava orgulhosa — Não deve ser mais difícil que fazer marionetes, né?

— Tá falando sério?!

Vou culpar a emoção pelo abraço apertado que dei nela. É um sintoma de feitiço não querer soltar nunca mais alguém?! Porque eu queria que Mencia Épicus grudasse em mim para sempre.

Mesmo assim a soltei, quando Lena voltou sorrindo com a vitrola em mãos. Só naquela hora notei que a balconista tinha um pircieng no dente. Muito bonito por sinal. Eu sempre tive vontade de colocar um no nariz, mas me falta coragem. Pietro vive dizendo que a vida é injustiça, porque enquanto os pais deles seriam capazes de o expulsar de casa se furasse qualquer parte do corpo, eu tenho um pai que nem se importaria se eu furasse aquele lugar. Esse menino exagera, mas eu concordo em algo. Os pais dele são mesmo um saco.

— Muito obrigada! — agradeci a Lena, assim que ela me entregou a caixa de papelão com a vitrola dentro.

— Não é nada. — Ela tirava algo do bolso da calça preta larga. — Minha banda vai tocar aqui mês que vem — A garota erguia um panfleto todo cheio de edições de raios — Se vocês quiserem vir, estão convidadas. Vai ser no freezer. Só entra gente da nossa galera.

Sáfico | Cartas de AmorOnde histórias criam vida. Descubra agora