Sério, maldito dia que eu sai sem minha bicicleta. Meu peito inspirava e expirava o máximo de ar em tempo recorde. Sob efeito da maior das classes dos adrenérgicos, aquele sem bula, mas cheio de efeitos colaterais: a paixão.
Era para quem estava vendo de fora uma cena no mínimo cômica. Uma ruiva maluca, e desesperada, correndo pelas ruas de Vicência. O que é certamente incomum por aqui. E no mínimo chamativo.
Eu podia sentir os olhares me atravessando quando contornei o bar do Chechel, ou quando desci deslizando o corrimão da escada de ladrilhos, virando meio cambaleando para a Rua Hibisco, que no final dela, encontra-se o pátio com os trailers e kombis dos circenses.
Eu me enfiei entre eles. Que passavam agitados de um lado para outro. Acho que tinham acabado de sair de um ensaio ou de uma prova de figurino, ou sei lá. Só sei que nunca tinha visto tanta pedraria, glitter e purpurina caber em uma pessoa só. Eu desviava de binóculos e espadas lançadas de uma mão para outra. Claves ao alto. Meu Deus, esse menino tá coberto só por folhas?
Foco, Eva.
Parei tensa meu corpo na frente do motorhome azul petróleo. As mãos na cintura e a aspiração quase na exaustão. Eu repetia milhares de vezes meus próximos passos.
Pé direito, pé esquerdo, pé direito, mão esquerda, dois toques, e Mencia abrirá a porta.
É simples.
Meu Deus, isso é aterrorizante.
Eu podia sentir que estava prestes a colocar para fora todos os meus órgãos. Bati na porta. E nada. Mais uma. Nada.
Coloquei meu rosto entre minhas mãos no vidro, tentando espiar por dentro se tinha alguém, mas eu só conseguia enxergar uma cama. Lençóis brancos desalinhados. E a caixa com a marionete em cima deles. Droga.
Cadê essa garota?!
Escutei uma risada um pouco distante de mim. Uma mulher. Cabelos e olhos escuros. Lenço e batom vermelho. O corpo escorado em uma kombi. Suzie Future.
Os dedos com a tatuagem das fases da lua levava o cigarro a sua boca. Ela tragava como se a vida dependesse disso. Puxou por tanto tempo, que achei que fosse se engasgar. E então soltou. Bem devagar. Como se fosse ela quem controlasse todo o tempo do mundo.
A fumaça quase a envolvia. O céu roxo atrás dela. A linha rosa no horizonte, como um último sopro do sol. O limite entre o dia e a noite. Entre a prudência e a depravação.
Suzie olhava bem fundo nos meus olhos, se divertindo. Um sorriso torto. Jogou a bituca do cigarro no chão, amassou e disse: você insiste em procurar nos lugares errados. Hoje é dia de enfrentar seus medos.
Mas eu já estou. Bem agora.
Ah, merda.
Tá legal. Eu consigo.
A luz piscando do letreiro do Épicus me atraia como como um oásis no deserto. Como um paraíso prometido. As portas do céu menciano.
No guichê um cara vigiava a entrada, me abaixei quando me aproximei o suficiente, deslizando por baixo da catraca, e então correndo em direção a onde meu coração me chamava.
O chão de carpete vermelho parecia me lançar para cima. A lona do circo quase sufocando. Como se todo o ar estivesse sendo usado para me levar até Mencia. Um complô da gravidade. Uma atração misteriosa. E atrevida.
Em frente aquela imensidão de assentos. E de possíveis pessoas. Só havia uma ali. Bem no alto.
Mencia Épicus.
Corri para a escada que levava ao trapézio. Sem pensar na altura. Sem pensar no depois. Eu queria fazer isso. Eu precisava. Como o bem precisa do mal. Como o padre do pecado. E Eva da maçã.
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Sáfico | Cartas de Amor
RomanceEva Sades vive em plena monotonia na cidade de Vicência - o lugar onde nada acontece. Até que, para sua supresa, após décadas longe de Vicência, o circo Épicus decide retornar a cidade, agitando todos os moradores, que cresceram aos contos dos espe...