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Ana Flávia povs

A claridade me incomoda quando desperto e sento-me rapidamente na cama onde nem faço ideia de como vim parar. O fato é que ao abrir os olhos, dei de cara com uma criatura vestida de
preto dos pés à cabeça, apenas com os olhos extremamente azuis visíveis. Amedrontou-me pra caramba.
A voz da mulher por baixo das vestes é doce, gentil e enrolada ao dizer:
— Olá! Não queria assustá-la! Sou Bruna, a irmã caçula do Gustavo. — fico envergonhada por julgá-la pelas vestes e abaixo a cabeça refletindo se estou sonhando.
— Prazer, Ana Flávia. Desculpe-me pela minha reação é que não esperava. Bom, suas vestes. Elas são... hum... — gaguejo enquanto tento me explicar e ela gargalha.
— Não se preocupe. Eu entendo perfeitamente. — diz para meu alívio. — Gustavo me disse que é brasileira, por isso não se preocupe. — completa. Mas e você como está?
Ainda estava tentando lembrar quem diabos é Gustavo.
— Estou me sentindo um pouco fraca e levemente tonta. — respondo omitindo o fato das minhas mãos estarem doendo.
Ela que, até então, estava de pé na lateral esquerda da cama, senta ao meu lado e segura minhas mãos. Tento esconder a careta de dor que possivelmente fiz quando ela aperta-as entre as dela, baixando o rosto e fingindo fitá-las unidas.
— Você vai ficar bem. — afirma com tanta propriedade que volto a fitar seus olhos azuis me indagando se estou vendo um anjo. Seria assim a imagem de um? Se for, nós humanos estamos tão
equivocados ao desenhá-los com asas e de branco…
Sacudo a cabeça, sutilmente, afastando meus pensamentos.
— Daqui a pouco um amigo de Gustavo, vulgo médico, virá examiná-la. — informa e vejo seus olhos ganharem um brilho intenso. Provavelmente está sorrindo também, mas não posso ter
certeza com aquele negócio cobrindo seu rosto.
Volto a me indagar sobre esse tal homem que ela fala e resolvo perguntar logo para saciar minha curiosidade:
— Gustavo? Desculpe eu acho que não sei de quem se trata. — falo e ela me fita por
alguns instantes. Parece meditar se o que eu disse é verdade, uma vez que me olha interrogativa.
Então, para minha surpresa, ri histericamente.
— Gustavo o seu noivo, o mesmo que estava aqui contigo quando desmaiou. Sabe, dessa vez ele se superou. Não vai me dizer que ele te disse um pseudônimo. Caramba! Ela não é um anjo e eu não estava tendo um pesadelo. Era tudo real, presenciei a morte de uma mulher. Imagens inundam minha cabeça como uma avalanche. O cheiro acobreado de sangue entrando em minhas narinas, os olhos negros do assassino me olhando quase que em desafio, eu aqui neste quarto olhando no vidro da janela as marcas que o quase estrupo deixou em meu corpo,
a garrafa que não consegui sustentar por causa da dor em minhas mãos, ele avançando sobre mim com raiva... Afasto suas mãos das minhas bruscamente fazendo com que me olhe diretamente. Então o nome do assassino é Gustavo. Posso até já ter ouvido alguém lhe chamar pelo nome, porém, nas condições em que me encontrava, era difícil ter guardado.
— É, não exatamente. E, hum, é, onde ele está?
— Meu irmão? — me perguntou ainda me encarando e eu assenti. — Ele foi chamar omédico que te disse. Gustavo é uma pessoa maravilhosa... — abaixa a cabeça sem graça. — Desculpa, apesar dele não ter dito o seu verdadeiro nome, você deve conhecer sua personalidade ou não iriam se casar. Só te peço que não discuta com ele por ter omitido esse detalhe. Tenho até uma suposição das suas intenções. Sabe, meu irmão parece não gostar muito de ser o mais indicado ao trono. Talvez ele apenas quisesse ter certeza de que o ama ou se tudo o que você queria com o casamento não era a posição de rainha. — ela tagarela sem parar como se eu estivesse aqui porque
quero.
— É sim. — é tudo que consigo dizer depois desse quase inacabável discurso, uma vez que vejo que ela não sabe sobre o lado animalesco do seu irmão.
— Você não parece feliz. — afirma e eu acordo das minhas suposições balançando levemente a cabeça como se esse pequeno gesto fosse capaz de fazer sumir minhas memórias.
— Eu, eu estou... — gaguejo mentindo, pois tenho quase certeza de que ainda vou ter problemas por ter quebrado a garrafa e não quero ser responsável por acrescentar mais um item à
lista ao dizer a verdade à essa moça iludida.
Em um rompante, ela se levanta me assustando novamente.
— Que cabeça a minha. Aqui tagarelando e você passando mal. Quer um pouco de água ou alguma outra coisa? — indaga gentil.
— Água seria ótimo. Estou morrendo de sede. — digo sincera.
— Vou pegar lá em baixo. Você vai ficar bem aqui sozinha? — assinto. — Já volto então.
Ela atravessa o quarto, então, vira a cabeça em minha direção como se estivesse averiguando se eu realmente ficaria bem e só então sai pela porta. Não há maldade nos olhos dela,
porém, não posso confiar em ninguém deste lugar, principalmente, depois de tudo o que presenciei. E ela é irmã daquele carrasco.
Uma nova onda de vertigem recaiu sobre mim e, por isso, voltei a me deitar. Fecho os olhos e respiro fundo numa tentativa frustrada de aplacar essa impressão que tenho de que o mundo está girando ao meu redor.
Ouço passos pesados vindo e, por saber que não se trata da Sarah, finjo ainda estar dormindo ou desmaiada. Percebo que são passos de mais de uma pessoa e que estão cada vez mais perto.
Uma voz masculina desconhecida fala algo. Depois também ouço o tal Gustavo. Este timbre eu nunca esqueceria, por mais que quisesse.
Eles conversam e eu quase não os ouço porque estou tentando controlar o tremor do meu corpo para não ser descoberta, mas isto não funciona depois da chegada de Bruna.
Abro meus olhos relutante e envergonhada. Aos meus pés, está Bruna do lado do irmão que me olha com atenção. Seu semblante
demonstra que está indignado, porém, não está da mesma maneira que os fitei da última vez. Já o medico, para minha total surpresa, não é tão maduro como esparava que fosse. Ele aparenta ter no
máximo uns vinte e seis anos, assim como o assassino. Seus olhos são claros, sua pele morena, cabelos pretos e, em seu rosto bonito, paira uma barba rala.
O médico me fez algumas perguntas e eu respondi. Logo ele colocou um soro em meu braço e o silêncio se estabeleceu. Este é quebrado por um toque de um celular. Pelo barulho, logo localizei o aparelho. Gustavo tinha o celular em mãos e o olhava com o cenho franzido.
— Preciso atender já volto. — diz e sai a passos largos antes de lançar um olhar
significativo para o doutor. Volto minha atenção para o homem de jaleco e então, ao peceber que estamos sozinhos e que essa pode ser minha única chance, uma luz se acende na minha cabeça.
— Doutor, posso lhe pedir um favor? — Ele me olha com curiosidade.
— Sim. — fala arrastando as letras depois de refletir por alguns segundos.
— Desde criança tomo medicamentos, pois tenho artrite reumatóide nas mãos. — falo de uma vez e continuo ao ver sua face ainda interrogativa e um pouco confusa. — O que queria saber é
se tem como você me trazer esses remédios. A verdade é que estou preocupada porque não tomo a
medicação há algumas semanas.
— Sinto não ter como lhe ajudar, ao menos, não lhe entregando uma medicação que pode trazer efeitos colaterais. Essa não é minha especialidade e, por isso, sei apenas o essencial para diagnosticar, caso venha a consultar um paciente com tais sintomas. O que quero dizer é que você
precisa de um acompanhamento especializado. Esse profissional vai avaliar seu histórico e fazer
alguns exames antes de lhe receitar qualquer medicamento.
— Mas, doutor, eu tomo os mesmos há anos. — tento argumentar, porém parece que isso só o deixou ainda mais decidido.
— Como assim? Você não refez os exames periodicamente? — indaga com preocupação.
— Não. — murmuro.
— Vamos fazer assim. Vou te recomendar um amiga reumatologista para você marcar uma consulta com urgência. — retira um cartão do bolso da sua maleta e me entrega. —Aconselho também que leve os seus exames antigos. É fundamental para que ela os compare com os exames que ela fará, podendo, assim, avaliar melhor a eficácia do seu tratamento.
— Mas doutor eu... — quando vou explicar sobre os meus exames antigos, pois não os tenho mais, Bruna entra de supetão no quarto e eu me calo.
Ela equilibra uma bandeja que, provavelmente, é a sopa que o médico pediu para ela ir buscar.
— Aqui está sua sopa, Ana Flávia. — anuncia contente.
— Obrigada. — agradeço inalando o aroma delicioso vindo dali.
— Bem, meu trabalho aqui está encerrado. Vou deixar você se alimentar com tranquilidade
e, quanto ao soro, não se preocupe, pois vou pedir pra Boo retirar. — fala arrumando suas coisas e sorri pidão pra Bruna que afirmou com a cabeça. — Ótimo! Foi bom te ver, Boo, você cresceu
bastante em relação a última vez em que nos vimos
— Foi bom te ver também, Felipe. — fala timidamente.
— Até uma outra oportunidade. — Felipe diz e caminha rumo à saída.
Fico preocupada agora. Como vou pagar por uma consulta? E, o mais importante, como vou sair daqui para fazer isso? Deus, eu estou perdida.
— Ana? — sou arrancada dos meus devaneios pela voz da Boo.
— Oi? O que disse? — falo sem graça.
— Que quando terminar, vou te ajudar a tomar um bom banho. — fala divertida.
— Não precisa! Posso fazer isso sozinha. — murmuro sentindo meu rosto arder de vergonha, só por cogitar a ideia de que ela me veja pelada.
— Tudo bem, então, contanto que se cuide. Parece que veio de uma guerra assim toda rasgada e suja. — completa sem peceber meu desconforto.
— Já estou me sentindo bem melhor para isso. Só vou comer antes. —explico.
— Vou lhe deixar sozinha, então. Depois passo aqui para tirar seu soro. — diz e me deixa terminando de tomar a sopa que, por sinal, estava uma delícia.
Coloco a bandeja do outro lado do colchão e vou tomar banho segurando a embalagem incômoda do soro enquanto avalio o lugar exuberante ao meu redor outra vez. É um quarto gigantesco
que mais parece uma casa. Há uma grande janela que leva a uma sacada em um dos seus lados. Em
frente à ela, duas poltronas vermelhas e, entre elas, uma pequena mesa com um vaso. Há quadros espalhados pelas paredes brancas. A cama onde estava fica um pouco alta por causa de uma elevação no piso de mármore branco. Esta elevação é redonda e só um pouco maior que a cama. Nela há três degraus detalhados em ouro.
No banheiro, tiro minhas roupas ou o que aquele velho deixou delas. Só de lembrar, sinto um aperto no peito. Quase que ele abusa de mim e, o pior, me mata estrangulada. Mas não quero
lembrar disso.
Tiro a foto dos meus pais que guardei no lugar do meu corpo mais improvável que alguém ache e, sim, é onde você está pensando, na minha calcinha. Tudo bem que esse lugar quase foi
violentado, mas, se assim fosse, preferia morrer a ter sido estuprada por aquele velho. E vamos combinar que se eu morresse, uma foto não me faria a falta que me faz em vida, já que estaria
reencontrado meus pais. Pelo menos quero acreditar que quando me for, os verei novamente.
Ligo o chuveiro e deixo a água me acalmar.
Após passar alguns minutos embaixo da água, decido que é hora de realmente tomar banho.
Desligo o chuveiro e sigo até um armário que tem ali e tomo a liberdade de abrir. Encontro tudo que preciso desde sabonete até toalha. Volto ao chuveiro, ligo novamente e lavo meus cabelos.
Dou a mesma atenção ao meu corpo. Logo estou limpa e me enrolo na toalha que encontrei. Em seguida, escovo os dentes com uma escova que achei ainda na embalagem e um pouco de creme
dental que peguei de um já usado. Enquanto manuseio a escova olho o espelho diante de mim que
reflete minha imagem. Marcas de dedos em um tom azul avermelhado eram visíveis em meu pescoço
e clavícula. E há um o corte no meu lábio inferior.
Já no quarto, me lembro que deveria ter pedido uma roupa emprestada a Boo, mas me recordo das suas vestes e descarto a hipótese. Com um suspiro, me jogo na cama tomando cuidado
com a bandeja e o soro que ainda está pela metade. Fecho os olhos repassando os últimos acontecimentos. Parece que agora este é o meu dilema diário: repensar o rumo trágico que minha
vida tomou.

<💫>

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