"24"

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O vento bateu em meu rosto, estava me punindo por ser tão burra. Eu caia rapidamente, não era um lugar tão alto a ponto de demorar para alcançar o chão, mas tudo parecia estar em câmera lenta, exceto meus pensamentos. Por quê eu estava fazendo aquilo? já não importava, era tarde de mais para se arrepender... na verdade, era tarde de mais para fazer qualquer coisa.

Abaixo de mim eu via o chão se aproximando, cada vez mais perto, cada vez mais assustador. Tudo em que eu conseguia pensar era em quando meu corpo o alcançasse. Sentiria dor? ou seria rápido o bastante para sequer notar? E quanto a mamãe? e John? Era tudo tão distante e perfeito agora. Só ali, a ponto de estourar minha cabeça no chão que percebi que não importavam os problemas, enquanto ainda houvesse vida, ainda haveria chance.

E de repente meu corpo se estabilizou no ar, leve e sereno... ao invés de descer rumo ao chão como antes, agora eu estava indo para frente. Senti o vento tocando lugares antes nunca sentidos, o que era aquilo? eu teria morrido? ou era tudo apenas um sonho?

Olhei para trás, duas grandes asas voavam com firmeza. Uma delas era de uma tonalidade branca jamais vista, a outra de uma escuridão marcante. Eram minhas asas, dignas de uma mestiça, metade anjo, metade demônio.

De onde eu estava dava para ver Londres inteira. E eu sentia o vento batendo nas penas, leve e maravilhoso. Mariana tinham razão, minhas asas nunca iriam falhar.

Eu voei até me sentir exausta, o sol já estava nascendo, e resolvi parar para ver... Toda uma vida e eu nunca tinha visto o sol nascer. E... meu Deus como era lindo, aquele tom alaranjado surgindo no horizonte, lento e ao mesmo tempo voraz, devorando aos poucos a cidade.

Fiquei por ali mais algum tempo. Não queria voltar tão cedo para a vida real, por mais que eu soubesse que teria que voltar.

Minutos depois alguém se sentou ao meu lado.

- Olá... - Leinad disse olhando o horizonte.

- o que faz aqui? - perguntei, também sem desviar a atenção.

- Não atendeu aos meus telefonemas... fiquei preocupado.

- Nada de importante... o que houve com o bebê?

- Levamos para a delegacia, mas não encontraram a mãe e tivemos que deixa-lo no orfanato. - ele suspirou - parece muito feliz Analu... aconteceu alguma coisa?

Uma vontade avassaladora de contar a Leinad sobre as asas me invadiu, mas eu não faria isso, afinal, eu sequer confiava nele.

- Fico feliz que esteja feliz... - ele prosseguiu - só pra esclarecer.

- Obrigada. - falei.

- fiz algo de errado no nosso encontro? - perguntou ainda vislumbrando o horizonte.

- Fora eu ter achado uma foto minha no seu quarto? não... nada de mais. - sorri - afinal, por que tinha uma foto minha no seu quarto?

- não é da sua conta. - ele disse depois de um tempo.

- é uma foto minha... passou a ser da minha conta.

- contou a alguém sobre isso?

- nem me lembro Leinad, há tantas coisas mais importantes que tenho lidado... - suspirei.

- quer desabafar? - ele perguntou, dessa vez me encarando.

- com você? - o olhei fixamente nos olhos - não obrigada.

- só quis ajudar, mas aparentemente você não precisa. - Leinad se levantou - olhe só, naquela casa, ali... está vendo?

Olhei para onde ele apontava, uma pequena casa à nossa direita.

- sim, o que tem?

- tem um casal tomando café da manhã... tão cedo...

- é, -falei - naquela outra as luzes acabaram de ser acesas.

Ele olhou para onde eu apontava por alguns segundos.

- A vida deles parece completamente normal...

- As vezes sinto falta disso... - sorri ao ver um homem pegando o jornal - não que minha vida não seja normal.

- sei...

um longo momento se passou, estávamos ocupados de mais vendo a movimentação cotidiana de todo dia de manhã.

- estou curioso... o que a fez acordar tão cedo para ver o nascer do sol? - Leinad prosseguiu.

- Insônia. - falei, feliz por não ter que mentir - e você?

- Sou um grande fã do nascer do sol senhorita.

Assenti.

Meu estômago doeu, minha parte humana clamava por comida. Voar gastava bastante energia pelo visto.

- estou com fome...

- pensei que não fosse dizer nunca! - ele disse sorrindo - vamos, vou leva-la para tomar o melhor café da manhã de sua vida.

Levantei sem dizer nada, totalmente convencida pela promessa de comer. Leinad estava de carro, e algo dentro de mim se encheu de uma gratidão estranha. Não ter que andar era muito bom, eu sequer tinha notado que estava tão exausta.

Tivemos que esperar até o tal " Peter Coffee" abrir, mas valeu a pena. Não sei se era a fome, mas de fato, aquele foi o melhor café da manhã de minha vida.

- Estava mesmo com fome... - Leinad disse me observando.

sorri como resposta.

- a quanto tempo está fora de casa? - ele perguntou.

- um bom tempo.

- quer que eu te leve?

- não! - falei mais alto do que o planejado.

- aconteceu alguma coisa?

- nada importante... só quero ficar aqui um pouco mais. - menti.

Ele se aproximou e limpou algo no canto de minha boca e meu corpo se aqueceu ao seu toque. Lentamente fui sentindo minhas bochechas corarem.

- E pra onde quer ir depois?

- poderia me levar até a casa de uma amiga? - disse me afastando - mas se não puder tudo bem...

- eu levo. - Leinad sorriu - acha que perderia a chance de mais alguns minutos ao seu lado?

- você está sendo muito gentil comigo... e não devia.

- não devia?

- eu não fui muito legal com você. - suspirei - pensei coisas ruins a seu respeito e...

- mas isso é problema seu - ele me interrompeu- estou fazendo a minha parte, minha consciência está tranquila.

- desculpe. - disse envergonhada pela lição de moral gratuita.

Ele me levou até acasa de Mariana e nos despedimos com um breve aperto de mãos. Bati na porta ansiosa por ver meu pequeno anjo da guarda.

- Analu? - ela disse ao abrir a porta.

- Uma é de um branco maravilhoso e a outra tão negra quanto os olhos de um demônio - falei.

- o quê?

- minhas asas.


Anjos na escuridãoOnde histórias criam vida. Descubra agora