03| Solidão dramática

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Preto era oficialmente a cor da minha vida. Tudo é preto, até o meu cabelo. É preto quando durmo, é preto quando penso nele, é preto quando acordo de manhã e olho à minha volta, é preto quando olho para o céu, é preto quando pinto as unhas, é preto quando falo e é preto quando respiro. Não podia estar mais envolvida nesta nova aura, simplesmente porque estou deprimida e nada me parece colorido. Não mais. Antes havia a cor do meu cabelo, e havia a cor do cabelo dele. Nem sequer isso conseguiu perdurar, pois desvaneceu. Ainda não me conseguia arrepender a cem porcento, mas sabia que tê-lo pintado fechava um capítulo da minha vida. Um capítulo chamado Michael.

Ainda sentia o cheiro da tinta em meu redor, mas começava já a ser menos forte e conseguia habituar-me facilmente. Tinha noção de que com Michael ao pé de mim teria sido muito mais fácil, pois ele podia ter-me ajudado a secar o cabelo e podia dar-me conselhos sobre como o manter bonito. Ele percebia dessas coisas, mas agora não estava aqui comigo para me dizer o quão bonita eu estava. Eu sabia que ele gostaria, mas não podia pensar muito, ou levar-me-ia à insanidade. Por um lado gostava de o poder apagar definitivamente da minha memória, ou acordar amnésica durante o resto da minha estadia em Nova Zelândia, apesar de no fundo saber que essa seria a pior e mais dolorosa decisão da minha vida. Michael não desapareceria de um dia para o outro, e eu nunca me iria cansar de pensar nele.

Richard trabalhava como mecânico, e afinal as suas mãos sujas de negro e o seu cheiro a óleo não eram somente o conjunto de "adereços" que ele usava para se autointitular como Deus do Punk Rock, ou coisa que o valesse. Conseguia ouvir o tilintar das ferramentas metálicas vindas da garagem, e apesar de ter a televisão quase no volume mínimo, a minha cabeça não podia estar mais dorida e cansada daqueles sons constantes e repetitivos. Não conseguia dormir mais do que cinco minutos sem voltar a acordar com um sonho onde Michael aparecesse, e apesar de ser agradável, conseguia tornar tudo mais difícil. Encontrava-me aborrecida e sem nada para fazer, e só uma boa atividade me conseguiria pôr de novo a pensar em coisas mais positivas. Elsa pedira a Richard que tratasse da minha matrícula numa escola aqui em Nova Zelândia, mas Richard parecia mais ocupado a arranjar carros do que a investir o seu tempo em mim, no entanto, eu não me importava. Não me sentia motivada e, pelo andar da carruagem, começava mesmo a preferir desistir da escola e começar uma carreira a arrumar carros. A verdade é que a minha vida académica neste momento se encontrava no seu patamar mais baixo, e seria difícil integrar-me a cem porcento numa escola se daqui a nove meses teria outra vez de desistir e voltar às minhas raízes australianas. Eu era como uma bola saltitona, sempre no chão e sempre no ar. Nunca havia realmente um meio-termo na minha vida, e isso começava a prejudicar-me. Embora eu repetisse para mim própria que durante nove meses não faria nada, não abandonaria este buraco e não falaria para ninguém, começava a desenvolver um desejo sobrenatural de sair desta caverna e partir em busca de novidades. Começava a perceber que o tempo passaria mais depressa se eu me envolvesse numa atividade qualquer, em vez de ficar parada a olhar para as aranhas, e por isso traçara na minha cabeça um agradável passeio pelos arredores desta cidade. Provavelmente acabaria perdida numa ruela qualquer, sem ninguém que me pudesse ajudar, mas mais valia tentar do que ficar à espera.

Levantei-me apressadamente do sofá e corri até ao quarto, tentando encontrar no meio de todas as roupas espalhadas pelo chão um casaco que me pudesse oferecer conforto. O dia estava solarengo, mas eu não tencionava andar por aí a pavonear o meu corpo pálido de forma tão desinibida. Vesti então um casaco verde militar, e arregacei as mangas, parando um pouco para respirar fundo. Os meus olhos logo caíram sobre a mesinha de cabeceira, onde o meu telemóvel repousava. Desligara-o antes de sair de casa, e até ao momento ainda não tivera coragem suficiente para carregar no botão e ligá-lo. Não conseguia ter uma noção do que estaria à minha espera quando ele despertasse, mas de certeza que aquele simples ato de ligar o telemóvel me iria deixar devastada.

Social Casualty II ಌ m.cOnde histórias criam vida. Descubra agora