22| Desiludir, iludir e desiludir outra vez

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Sentia-me dormente, como se o meu corpo houvesse paralisado e agora não existisse forma de me voltar a mover de novo. Curiosamente, chovia. A última vez que me lembrava de ter visto chuva foi naquela noite em que Luke, Michael e eu saímos de casa e acabámos num bar qualquer, à beira da estrada. Nessa noite, deixei-me repousar finalmente nos braços do rapaz que sempre amei, admitindo a mim própria que todo o ódio que até então pensava nutrir por ele não passava de uma estratégia que o meu coração arranjou para não sofrer. Lembro-me de chorar nessa noite, e apesar de estar em segurança agora, tenho esta enorme vontade de repetir esse gesto. O mundo é silencioso e quieto, não existem luzes nem pessoas na rua, só o reflexo da lua a bater no vidro pontilhado de gotas, que consequentemente se refletem na minha pele pálida, e o murmúrio dessas gotas, que caem delicadamente sobre a terra.

"Matty...", consigo proferir, por entre o cansaço que me inebria. O rapaz vira o seu rosto na minha direção, parecendo calmo mas ao mesmo tempo preocupado com a tristeza na minha voz. "Será que podemos parar?" Ele parece não entender a minha pergunta, mas fica claro na sua cabeça quando eu olho em volta e suspiro, lançando indignação pelo ar.

Matty coloca as mudanças e abranda a velocidade do carro, encostando-o à berma da estrada. Esta encontra-se deserta, nem uma alma vagueia a esta hora da noite pela rua, e sinto que somos os dois únicos humanos vivos no planeta. Retiro o cinto e olho-o uma última vez, dando-lhe indicações para fazer o mesmo que eu. Confuso, segue os meus passos e sorri, como se todo aquele teatro o fascinasse. Consigo perceber a admiração pelo brilho dos seus olhos, que apesar da pouca luz se mostram mais vivos e claros que nunca, apesar do tom castanho continuar a ser o mesmo.

"Estás bem?", pergunta. Sinto uma ponta de malicia na sua voz, como se estes meus pedidos viessem carregados de segundas intenções. Contudo, não tinha outras ideias em mente para além daquela de parar, respirar por um segundo e talvez desabafar acerca desta dormência que me deixa dolente.

"Vamos caminhar.", tento sorrir, agarrando-lhe na mão. Permaneço quieta durante uns minutos, tentando decifrar o que lhe vai na cabeça, mas rapidamente volto a quebrar o silêncio quando percebo a sua hesitação. "O que foi? Achas-me louca?"

"Um bocadinho, talvez.", responde, voltando a sorrir. "Está a chover e tu queres caminhar por aí, numa estrada deserta às duas da manhã."

"Preciso de pensar.", encolho os ombros, "Pensar em voz alta e refrescar as ideias..."

Por um lado sei que é arriscado fazer isto, sobretudo sabendo que entre mim e Matty existe tudo menos uma relação saudável de amizade, mas não me demovo de o ter como meu amante, nem que seja apenas por uma noite. Não tem de ser nada físico, carnal ou platónico, pois eu contento-me com a presença dele, com as suas palavras e gestos. É o que me basta.

Matty faz-me a vontade após alguns segundos, percebendo que é realmente importante para mim descomprimir a tensão e usá-lo como saco de pancada, nem que seja só para me ouvir resmungar acerca do quão cansada me sinto. Ele larga-me a mão e abre a porta, enquanto eu faço o mesmo e nos encontramos de novo, à frente do carro. As gotas da chuva são rápidas a atacar-nos os corpos, que rapidamente ficam ensopados pela água que cai das nuvens. Agarro-lhe novamente na mão, membro que felizmente ainda se encontra seco e quente o suficiente para me deixar confortável, e dou um passo em frente, encaminhando-o pela estrada negra e vazia.

"Qual é a tua música favorita, Matty?", questiono, sem conter o sorrisinho tonto que os meus lábios teimam fazer. Há uma esperança no fundo do meu peito. Espero ouvi-lo dizer a mesma canção que Michael costumava cantar para mim, mas ao invés Matty solta uma gargalhada, levando consigo todas as hipóteses de existirem semelhanças entre os dois rapazes.

Social Casualty II ಌ m.cOnde histórias criam vida. Descubra agora