17| Um talvez

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A ansiedade tomou conta do meu sistema nervoso de uma forma tão intensa que me levou a nem sequer conseguir adormecer. Por um lado não me importava, pois além de estar de férias e de me apetecer ficar a noite inteira no sofá a ver filmes lamechas, precisava de me preparar para enfrentar o grupo que não tardava a invadir a minha nova vida, mas no fundo queria acordar com uma cara fresca; não queria que Calum, Luke, Rena e Nia chegassem e me vissem com cara de zombie e tirassem conclusões precipitadas acerca do meu estado interior, que eu tinha a certeza irem ser posteriormente fornecidas ao meu ex, que nem era ex nem atual, mas sim uma confusão. Quando eles chegassem, umas das minhas intervenções seria exatamente saber em que estado ficou a minha relação com Michael, e talvez retirar algumas informações do que se andou a passar no último mês da sua vida.

"Bom dia...", Richard apareceu-me à frente de pijama, com a boca aberta a meio de um bocejo. Tinha os olhos ramelosos e a barba começava a tornar-se parecida às dos sem-abrigo, mas pelo menos não cheirava mal. Aproximou-se de mim mas não me beijou, como eu tinha receio que fizesse, limitando-se a mover o corpo escanzelado até ao balcão da cozinha, para preparar café. "Acordaste cedo ou dormiste aqui?", interrogou, esticando-se preguiçosamente para pegar no seu maço de tabaco jazido em cima do micro-ondas.

"Simplesmente não dormi.", sorri-lhe de forma seca, aconchegando-me às almofadas que me rodeavam.

"Porquê? Isso não te faz bem, Cloe.", avisou, como se os seus hábitos fossem um exemplo a seguir. Acendeu o cigarro que tinha na boca no bico do fogão e exalou o fumo com prazer, deixando-me perplexa a olhar.

"Sim, claro. Diz o surdo ao cego.", revirei os olhos. "Mas eu não consegui dormir, de qualquer forma. Estou um bocado nervosa com a chegada dos meus amigos...", confessei, levantando-me para ir arranjar algo para comer.

"Hm...", cerrou os olhos. "Pois, é normal que te sintas assim...", esfregou o queixo, dando um salto quando alguém bateu à porta. "Quem será?", murmurou, dirigindo-se à entrada.

As minhas mãos trémulas moviam-se freneticamente, com a faca na esquerda e a fatia de pão na direita, barrando-o com rapidez e algum nervosismo, como se o simples ato de preparar uma torrada fosse quase uma missão suicida. Depois, abri um pacote de bolachas de chocolate e ingeri duas de uma vez, mastigando com dificuldade e parecendo uma daquelas raparigas tresloucadas que se metem a comer e depois acabam por deitar tudo à sanita. O meu problema não era um distúrbio alimentar, mas sim a vontade que eu tinha de ingerir doces, de certa forma para me acalmar. Nunca tinha experimentado fumar, nem nunca alguma vez ousara fazê-lo, mas o açúcar funcionava quase como a nicotina no meu sistema, que ao cabo e ao fim havia de estar poluído com muitas porcarias.

"OLÁ!", fui apanhada de surpresa por um ser de cabelo azul, que se encaminhou na minha direção para me abraçar. De olhos arregalados e boca cheia, deixei-me ser apertada contra o seu peito, sentindo um terrível cheiro a tabaco entranhado na sua roupa, e suspeitei que ela não fosse lavada há alguns dias. Quando me soltou, mirou-me de forma estranha e voltou-se para o meu pai. "Está mais crescida, não?", Richard limitou-se a encolher os ombros, não parecendo muito interessado na minha avaliação física.

"Atticus?", perguntei, não querendo enganar-me no nome. O homem acenou que sim, roubando uma bolacha do meu pacote. "Bem... eu se calhar vou tomar um banho. Fiquem à vontade...", murmurei, recuando alguns passos para trás. Este homem assustava-me, não só por ter sido namorado da minha mãe em tempos loucos cuja fama da Sra. Dona Elsa não parecia ser a melhor, mas também pela sua aparente obsessão em tentar agir como um adolescente (mesmo que falhasse redondamente nessa missão, a começar pela cor do cabelo).

Quando entrei na casa de banho, pousei o pacote de bolachas em cima do cesto da roupa suja e despi as roupas que tinha envergado durante mais de vinte e quatro horas, observando depois o meu rosto no espelho. As olheiras eram visíveis e eu tinha ar de quem não andava a fazer escolhas saudáveis, o que correspondia à verdade. Talvez um pouco de maquilhagem fizesse milagres, mas soube que nunca poderia esconder em pleno a tristeza e o desgasto que me trespassam a face sempre que recordo o porquê de não estar em Sydney. Isso acaba sempre por vir ao cimo do meu pensamento, mesmo que eu tente evitar o tema da forma mais subtil possível, e isso não me faz bem.

Social Casualty II ಌ m.cOnde histórias criam vida. Descubra agora