6. Mãezinha

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Após encontrar e me despedir de Yas, assim com de Han na segunda feira, peguei um táxi e fui embora.
Dali em diante eu voltaria para minha rotina tensa, chata, cansativa, anônima e sozinha.
Girei a chave na fechadura e abri a porta, deixei os sapatos do lado de fora e calcei o par de pantufas amarelas com orelhas de Pikachu que ganhei no meu aniversário de treze anos - ainda serviam em mim; cresci na idade, mas não tento no tamanho -, elas estavam na sapateira atrás da porta.
- Mãe, cheguei. - gritei colocando a mala para dentro e fechei a porta.
Coloquei minhas chaves com bolsa de alça e meu celular em cima da estante e caminhei para o corredor. Conforme adentrava a casa não muito grande, pude sentir o cheiro de kimchi vindo da cozinha; meu estômago automaticamente gritou de fome e minha boca salivou.
Sorri quando vi a mulher de costas mexendo no armário suspenso a pia, caminhei na ponta dos pés até a mesa, arrastei lentamente uma cadeira e me sentei. Me mantive em silêncio esperando ser notada.
- Como é possível que eu tenha esquecido de comprar mais shoyu, se tudo que eu faço eu coloco? - mamãe resmungou sozinha. - Como alguém vive sem shoyu? Preciso anotar na agenda para me lembrar de comprar.
Ao se virar e me ver sentada a mesa, a mulher não se assustou, mas deu um grito de surpresa e felicidade: eu ri levemente.
- Oooooh, Yang. - mamãe veio até mim. - Não te ouvi chegar, por que não me avisou que viria?
Minha preciosa Nanyin-Yang me abraçou de lado e acariciei seu braço.
- Recebi uma proposta de trabalho aqui na cidade. - contei. - E entre ficar em um hotel ou aqui, é claro que eu não perderia a oportunidade de ver a minha mãezinha.
Mamãe foi até a pia e destampou a panela de arroz elétrica que liberou vapor instantaneamente, ela abriu uma gaveta no armário de baixo e pegou um prato.
- Onde deixou seu carro?
- Ah, não, eu peguei um táxi. - me levantei e fui até a geladeira me servindo com um copo d'água gelado. - Não vim de casa.
Mamãe parou de encher o prato de arroz e me olhou.
- Onde você estava?
A história era muito longa, e ainda que eu fosse adulta e independente, mamãe surtaria se soubesse que eu estava em uma casa com vários homens "estranhos" - para ela. Então me limitei a dizer meia verdade e um terço de mentira:
- Eu estava com a Yas, e eu não queria dirigir por duas horas até aqui.
- DUAS HORAS? - os olhos da minha mãe parecia que iriam sair de órbita. - Oh, esse táxi deve ter custado uma fortuna, filha. Você precisa economizar dinheiro, se tem um carro você deve usá-lo. É até mais seguro do que entrar em um carro com um completo estranho.
Coloquei o copo na pia e voltei para onde estava sentada a mesa.
- Nós precisamos de pessoas estranhas em nossa vida, mamãe. Sejam médicos, donos de conveniências e restaurantes, escritores, roteiristas e fotógrafos. - dramatizei nos três últimos exemplos.
- Ah, lá vem você. - mamãe veio até mim com um prato cheio e o colocou em minha frente sobre a mesa. - Vai, come tudo. Arroz com molho de pato e topokki com batata. - ela foi até a geladeira e pegou um pote, voltou para perto e o pôs na mesa. - Kimchi! Não está tão frio, acabei de colocar na geladeira, não sabia que viria.
- Que saudade da sua comidinha. - funguei o pavor que saia do prato. - Obrigada, mãezinha.
- Come tudo. - mamãe deu um tapinha no meu ombro e saiu em direção o corredor. - Eu vou lavar roupa.

Por volta de quatro da tarde subi para o quarto que costumava ser meu quando morava com minha mãe, ela não mexeu em um quadro sequer desde que me mudei para morar sozinha em outra cidade para cursar a faculdade. Eu estava sentada no canto de leitura perto da janela com o computador no colo, havia deixado a porta trancada para evitar que mamãe entrasse e me interrompesse.
- Como você se sentiu com todo aquele comentário que eles estavam fazendo? - perguntou a mulher do outro lado da chamada de vídeo.
- Óbvio que eu fiquei desconfortável com aquilo, mas o que mais me deixou frustrada e irritada foi eu ter me sujeitado aquilo. - falei para o computador. - Estava tudo bem no primeiro dia, eu não sei o que aconteceu.
- O que você estava pensando quando entrou procurando por ele?
Pensei um pouco para responder, a verdade era que nem eu mesma sabia.
- Sei lá, eu acho que só queria saber se estava tudo bem, porquê em um momento ele estava rindo e brincando, e no outro ele não voltou e os meninos não disseram o motivo.
- Você não acha que pode estar em negação quanto a isso? - perguntou a mulher. - Talvez você não queira reconhecer que o procurou com a intenção de que aquilo acontecesse.
Apoiei o computador na almofada e cobri o rosto com a mão abafando meu suspiro de irritação.
- Nanda, eu já disse que não planejei aquilo. Em um momento estava tudo bem, e em outro estava acontecendo, bem ali para qualquer um na casa ver.
- Suuyang, você está tomando seus remédios direitinho?
Entortei os lábios numa careta.
- Talvez eu... tenha esquecido de tomar naquele dia.
Nanda deu uma gargalhada de ironia a qual eu já estava acostumada a ouvir e identificar com facilidade.
- Só naquele dia em questão?
- Vai me dizer que a culpa é minha por ter esqueci de tomar a medição?
- Se você esquece de tomar uma medicação de uso contínuo no horário fixo após seu intervalo, é só tomar quando se lembrar e seguir com o uso em um novo horário a partir dali - Nanda pausou . - Eu vou te passar uma nova receita.
- Não precisa, eu ainda tenho alguns.
Nanda franziu o cenho e seus lábios se torceram, o que me fez perceber que, como sempre, eu caí em um de seus truques para saber quando eu falava ou não a verdade.
- Ai, merda. - pensei em voz alta.
- "Ai, merda" mesmo! - a mulher do outro lado da tela disse calma, mas eu me sentia terrível quando recebia seu sermão. - Faz mais de vinte dias que eu te passei a medição para duas semanas, se você não veio pegar mais e ainda diz que tem, é porque você não está mantendo o compromisso consigo mesma.
- Eu tenho estado com tanta coisa na cabeça que eu acabo esquecendo as vezes. - cocei a cabeça franzindo as sobrancelhas.
- Ah, quer que eu libere um espaço na sua mente para te ajudar? - ela dei um sorriso falso. - Posso encerrar suas sessões, aí você vai ficar com a mente mais leve.
Revirei os olhos e bufei.
- Da para só uma de nós ser a dramática? Esse papel é meu.
- A quanto tempo você não consume bebida alcoólica? - Nanda questionou.
- Bastante tempo. - contei.
- Você considerou a minha sugestão passar um tempo em uma clínica?
Rosnei olhando para a rua pelo vidro da janela do espaço de leitura, não queria tocar naquele assunto. Embora eu sempre refletisse sobre tudo que Nanda falava, aquela era a única coisa que eu nunca havia feito questão de pensar a respeito. Não iria interromper minha vida devido a um problema desse tipo, embora eu já tivesse passado por inúmeras situações que, posteriormente, me fizeram desejar um tempo escondida de outras pessoas.
- Nanda, olha só, a chamada está cortando. - inventei.
- Sue-Yang, não ouse fazer isso de novo. - ela disse erguendo o indicador direito, prevendo minha técnica repetitiva.
- O que você disse? Não estou te ouvindo. - falei, antes de clicar no botão em vermelho encerrando a chamada.
Fechei o computador e suspirei, fui até a cama e virei minha bolsa sobre a mesma espalhando tudo havia ali dentro. De tudo que havia se espalhado, catei três cartelas de remédios e destaquei um de cada uma.
Um deles era branco e tinha uma forma cilíndrica, era o maior de todos. O segundo era vermelho e redondo, de textura gelatinosa. Já o terceiro também era redondo e branco como o primeiro, porém era menor que os outros. Me estiquei para pegar uma garrafa d'água no criado mudo ao lado da cama, coloquei na boca o comprimido maior de todos e o engoli com ajuda da água. Os outros dois joguei de uma só vem na garganta e os engoli dando mais um gole na garrafa.
Respirei fundo e deitei na cama olhando o teto, minha vida parecia ser tão boa e tão ruim ao mesmo tempo. O que mais me perturbava não era fácil de resolver, e conviver com isso estava sendo um inferno. Procurar ajuda não pareceu ter aliviado as coisas: não por um lado. O pior de tudo parou de acontecer, mas a forma como eu me sentia depois era persistente, mesmo quando eu não havia feito nada recente que me motivasse sentir daquele jeito novamente. Apenas as lembranças de algumas coisas passadas bastavam para me fazer sentir assim, e eu estava cansada, exausta, frustrada, triste e irritada comigo mesma acima de tudo.
Quase sempre eu pensava em jogar tudo para cima e me entregar, mas passei a pensar sempre na imagem da minha mãezinha, e já não tinha esse pensamento com tanta frequência.
Mas ele nunca foi embora.

v1 - Not celebrity • STAY ARMYOnde histórias criam vida. Descubra agora