Capitulo 31- Porque há o direito ao grito. Então eu grito.

30.7K 2.5K 94
                                    

EMMA

Apoiada contra uma pedra, com uma garrafa de água em uma das mãos, acabei me perdendo em pensamentos ao contemplar a natureza.

Eu não sabia que a vida ainda poderia me fazer sorrir, mesmo depois de perde a cor do meu mundo. Mas Nicolas fez. Ele me fez sorri de novo quando pensei que não tinha mais forças pra viver. Conhecer Nicolas foi a coisa mais maravilhosa que já me aconteceu. Todo medo e angústia não permanecem mais em meu coração. Quando estou com ele, sinto-me completa, então não é justo com ele.

Ele precisa saber do meu passado.

Por anos eu lutei tanto, eu me abafei, e a cada dia que passa as coisas não se aliviam, o tempo não me dá uma trégua. Ao contrário, tudo se avoluma dentro de mim, como se não sobrasse mais espaço e eu estivesse a ponto de explodir.
Eu sinto uma coisa muito ruim, arrasadora, me aguilhoando. É uma tristeza atroz por ter deixado aquela menina lá, esquecida e perdida nas lembranças que eu não queria ter. Escondida nas verdades que eram só minhas. E ali, não sei por que, me dei conta que eu também não dei crédito a ela. Eu a preferi calada, esquecida, morta. Eu a anulei em mim, por que eu não queria que o que ela passou me definisse. Mas está na hora de voltar ao passado e conversar com aquela menina que ficou lá, escondida nos escombros das minhas lembranças. Eu tinha que deixar minhas defesas caírem por um momento e deixar que aquela minha parte, aquela metade infantil que eu sufocava, vim à tona.

— Você está quieta demais. —Nicolas sussurrou ao abraçar-me por trás, beijando de leve meu pescoço.
— Estou encantada com a vista desse lugar.— Sorri, ficando de frente para ele. 
— Quando decidi ter trazer aqui, parte de mim queria te fazer esquecer um pouco dos problemas. — Pousou as mãos em minha cintura e me trouxe para mais perto, aconchegando-me contra seu corpo.—Enquanto que a outra parte achava que essa seria uma ótima oportunidade para esclarecermos algumas coisas.

Concordei com um aceno, entendendo a deixa.

— Preciso que me prometa que nada, absolutamente nada, irá mudar entre nós. — Pedi.— Por favor, não quero que desista de mim depois do que vou lhe contar.
— Prometo—Declarou, olhando nos meus olhos.— Nada, absolutamente nada, irá mudar.

Ele beijou a ponta de meu nariz.

— Então.. ?—Me incentivou, e eu suspirei, pensando por onde começar a longa história.
— Quando eu tinha cinco anos meu pai sofreu um acidente de carro e acabou falecendo —Comecei, sentido o coração apertar ao lembrar do começo do fim de minha mãe. — Eu ainda era muito nova, mas lembro que minha mãe começou a mudar depois disso. Ela não saia mais de casa, e por muitas vezes, se trancava no quarto.

Meu coração soca o peito  com a lembrança.

— Meu irmão era muito novo. Tinha três anos e fui eu quem cuidei dele. Tudo para não incomodar nossa mãe.

Enquanto eu relembrava aqueles anos e revirava a história toda em minha cabeça, Nicolas mexia em meu cabelo quase que distraidamente, e embora ele não dissesse, eu podia sentir sua ansiedade por saber mais.

— Foi quando ele apareceu. No começo era bom, carinhoso e sempre me trazia doces e brinquedos. Minha mãe foi melhorando e voltando a ser quem era. Por isso eu gostava dele, ele fazia  minha mãe sorrir. Mas na verdade, ele nunca passou de um lobo vestido com pele de cordeiro. E eu só vim perceber isso quando tinha nove anos.
— O que aconteceu?—Pergunta com cautela, mas posso perceber o  horror em sua voz.
— Marcelo começou a me olhar de forma estranha. Eu não entendia o motivo, mas eu não gostava do jeito daquele olhar. —Não consigo impedir as lágrimas
— Esse doente te desejava?—Vi raiva cruzar seus olhos . — Uma menina de nove anos?
— Eu tinha dez anos quando tudo realmente começou. — Fecho os olhos. As cenas passando como flashes em minha mente.

As lembranças estavam mais fortes e vívidas do que nunca. A mão dele na minha, tão maior, tão suave enquanto me levava para dentro do quarto. O silêncio. O medo. O lençol branco que cobria o colchão. O modo como me fez ficar quieta e começou a tirar minha roupa, o laço que minha mãe tinha feito para meu cabelo.

Doi tanto...

— Não pare —Nicolas entrelaça nossas mãos, me dando o apoio necessário para me entregar a lembrança.
— No começo, ele só me olhava tomar banho e trocar de roupa. —Senti um nó se formar em minha garganta.— Depois, começou a se masturbar em minha frente.

Meu estomago se revira com a visão de Marcelo se tocando.

— A cada semana que se passava, ele avançava um pouco mais. Me tocando, me fazendo tocá-lo. Beijos, cortes, violação do meu pequeno corpo. — Lembranças dolorosas me atacaram e abri meus olhos.
— Você não procurou por ajuda?

Neguei.

— E por que você não o fez? Por que não contou a alguém?— A respiração dele está acelerada, e consigo ver pequenas veias saltadas em sua testa, pescoço e braço. —Onde estava sua mãe?
— Quando ela descobriu, já era tarde. Ele já estava obcecado por mim. Então começou a bater e ameaçar minha mãe. Dizia que, se ela o denunciasse para a polícia, ele mataria meu irmão e eu.

Sentindo a boca seca por falar tanto e de maneira praticamente ininterrupta, fiz uma pausa rápida e bebi um gole da água.

— Com quinze anos eu já estava ciente de que o que ele fazia era crime. Por isso, em uma noite, eu o ameacei. Disse que iria entregá-lo a polícia, e com raiva, ele usou meu irmão. Queimou-o com canivete.

Sem conseguir encarar Nicolas enquanto relembrava meus maus momentos, respirei fundo, criando coragem para continuar me mostrando para ele, camada após camada.

— E assim ocorria todas as vezes em que eu me negava a fazer algo. Foram exatamente oito anos até eu finalmente conseguir me livrar daquela situação.
— Desgraçado! —Nicolas gritou, fazendo-me estremecer pelo susto.
— Mas eu também tive culpa.— Expliquei.—Eu era a única culpada. Ele sempre dizia isso. Meu corpo reagia ao dele.
— Você era uma criança ...—Ele murmurou me afastando o suficiente para olhar em meus olhos.— Um anjo, que tinha esperanças e acreditava em contos de fadas. Foda-se se seu corpo reagia. É biologia, Emma. Você não tinha  controle sobre isso.

Desviei os olhos.

— Olhe para mim!— Exigiu e olhei-o, assustada.—  Você nunca teve culpa. E não quero que pense isso, diga isso. Nunca mais, Emma, está ouvindo?

Balancei a cabeça.

— Ele é um filho da puta, um estuprador covarde! E você... Você era apenas uma criança porra!— Voltou a me abraçar.

Ficamos assim por um longo tempo antes de voltamos para o carro, onde soltei alguns suspiros profundos. Um nó se formava no meu estômago, deixando-me um pouco enjoada. Eu sentia o medo me rodando.

E se Nicolas ficasse com nojo de mim?

—  Tudo vai ficar bem—Nicolas murmurou, percebendo minha inquietação.— Nada entre nós vai mudar. Prometo. Vamos resolver tudo, eu estou contigo, do seu lado.
—  Eu sei... É só que...—A frase morreu em minha garganta.
— Que? —Pergunta, atento a estrada.
— Você ficou com...nojo?
— Jamais pense isso novamente—Me repreendeu— O que você me contou só me fez ver o quão guerreira e forte você é. Só aumentou o que sinto por você.— Diz e o sorriso nasceu fácil em meu rosto, como na noite anterior.

Algo parecia ter saído de cima de mim, o peso de uma tonelada que arrastei pela vida. Não sei nem ao certo o que senti. Uma calma que eu não esperava, como se todo desespero tivesse esvaído junto com meu relato.

— Gosto do seu sorriso. —Nicolas disse. —Olha o que ele faz —Ele pegou minha mão e colocou em seu peito, sobre o coração. Eu podia sentir os batimentos fortes, descompassados.
— Ultimamente, você é o motivo deles.
— E você dos meus. —Sorriu mostrando duas covinhas apaixonantes em seu rosto.

Foi nesse exato instante em que me dei conta que, independente do que tivesse que enfrentar, tudo que eu precisava para ser feliz era isso: Ver seu sorriso e saber que eu era o motivo dele.

Noivos por acaso Onde histórias criam vida. Descubra agora