As bigornas da Espeto Vermelho sofreriam com marteladas bem antes do amanhecer.
A noite virava madrugada quando um mensageiro montado em um cavalo chegou na forja da cidadela e chamou por seu proprietário batendo na porta usando uma argola de ferro presa ás tabuas. Bago, pertencente à linhagem dos anões, foi quem o recebeu vários minutos depois. Vestia roupas leves e amassadas, comuns para alguém que fora tirado da cama à força. A grande barba acobreada e cheia estava tão bagunçada quanto seu cabelo, de mesmo tom.
O mensageiro então lhe estendeu um pergaminho, onde destacava-se um selo de cera escura, contendo o carimbo da nobreza local.
Os olhos pretos do anão arregalaram-se de espanto, e sem cerimônias, fechou a porta com a força de um soco.
Sua ação seguinte foi quase automática.
— Kira! — Ele berrou. A voz era grave e pouco rouca. Desenrolou o pergaminho tentando não rasgá-lo, mas os dedos grossos e rudes dificultavam a simples tarefa. Com olhos ligeiros e leitura afiada, tomou para si rapidamente tudo que fora escrito: O Duque lhe encomendara uma centena de espadas medianas e gume duplo, que deveriam ser entregues no castelo até o anoitecer daquele dia. As armas seriam usadas pelos guerreiros que serviriam a Legião dos Bravos, de passagem no modesto ducado, e que partiriam rumo à Buraco Negro, cidade no outro lado do continente onde digladiava-se uma guerra nunca antes vista. — Acorde, moleque!
A forja em si funcionava no térreo da casa, e somente no andar de cima ficavam os cômodos e aposentos. Descendo escadas laterais apareceu um jovem de corpo forte, cabelos pretos e desgrenhados. Alto, parecia ter dezessete anos. Estava sem camisa.
— Mas que merda, Bago... — Resmungando, coçou um dos olhos.
— Achei que estivesse morto! — Retrucou o anão. Estendeu o pergaminho para o rapaz. — Leia isto.
Kira aproximou-se, e tendo o documento em mãos, leu suas palavras. Os olhos verdes e vivos se abriram, o sono se esvaiu completamente.
— Cem espadas?! É impossível!
— São ordens do Duque, temos que segui-las e cumpri-las! — Bago virou na direção das grandes fornalhas, apagadas.
— Ele não deveria ter feito o pedido um pouquinho mais cedo? — Enrolou o pergaminho com rapidez.
— Iniciativa, Kira! Sem questionar! — Exclamou o ferreiro. — Vá chamar os outros, vou cuidar das chamas enquanto isso.O jovem deixou a forja às pressas, indo até as casas dos outros cinco ferreiros que trabalhavam com Bago. Todos ficaram surpresos com sua aparição repentina.
Reuniram-se na Espeto Vermelho e iniciaram os trabalhos ao serem informados de tudo. Juntaram primeiramente o material que utilizariam, unindo todo o estoque do melhor metal que tinham para suprir a demanda. Kira organizava e entregava as ferramentas necessárias, como martelos, foles, pinças e moldes. Vez ou outra saia para pegar água, bombeando o líquido do solo através de uma manivela com torneira, enchendo baldes para resfriar o metal.
As peças cilíndricas iam aos fornos abertos, cujas flamas eram alimentadas por toras de carvão vegetal inseridas através de compartimentos em suas bases, reavivadas pelos sopros ritmados dos foles. À frente das fornalhas estavam os cinco ferreiros e Bago, suando como se estivessem numa sauna.
Menos um.
O primeiro à retirar um cilindro metálico era o único animano do grupo, um Sisrrar, um grande lagarto bípede e esguio, olhos amarelados, de escamas marrons e língua bifurcada. Certamente o que menos sofria com o calor ali. Pegou a peça incandescente usando uma pinça de cabos longos, pousou-a sobre a bigorna, sacou a marreta do cinto e começou a martelar. Os demais companheiros fizeram o mesmo quase em seguida, e então Kira passou a pressionar os foles um a um para manter o fogo alto e as barras no ponto perfeito. Não era corriqueiro o rapaz trabalhar com os martelos, mas conheciam muito bem a arte dos ferreiros.
O processo perdurou todo o restante da madrugada.
Ao fim do crepúsculo, já tinham vinte e sete laminas prontas e estavam sem metal nas fornalhas. Kira, então, começou os ajustes finais, como afiar e rodear o punho com couro, além de encaixar o botão com o emblema da Espeto Vermelho na extremidade do punho.
Os ferreiros fizeram uma pausa para descansar os braços e se afastar do calor.
— Sua irmã ainda não apareceu. — Resmungou Bago, aproximando-se. Ao lado do rapaz, era visível a diferença de altura entre os dois. O anão media um metro e cinquenta centímetros de altura. Forte, de tronco e membros robustos, musculosos e compactos. Geralmente tinha um cuidado especial com a barba cor de bronze, mas agora vários fios dela encontravam-se chamuscados. Era leal e cuidadoso, educou Kira e a filha por todos aqueles anos com notável dedicação e esforço, mas sempre fora em essência rude e carrancudo. Muitos diziam, ou brincavam, que era devido à seu nome peculiar. — Você precisa de ajuda com isso, por que não sobe e vai chamá-la?
— Entrar no quarto de Liz? — Kira perguntou, fingindo espanto. — Não, obrigado, ainda quero me manter vivo para servir à Legião. Por que o senhor mesmo não vai?
— Eu também quero viver. — Retrucou, com um sorriso discreto nos lábios. O rapaz observou, fazia sempre questão de vê-lo com o semblante feliz. —Lizart!! — Berrou à plenos pulmões em seguida. — Desça já!
Kira sorriu e voltou para suas tarefas.
Quatro espadas prontas jaziam ao seu lado, empilhadas na bancada de acabamento.
Dois minutos passaram até uma linda moça de cabelos castanhos como os de Bagos, bem cortados pouco acima dos ombros, descer os degraus.
— O que está havendo? Por que tanto trabalho tão cedo?
— Venha ajudar seu irmão. — Ordenou o anão, apontando para uma segunda banqueta ao lado de Kira. Ela se aproximou. O Sisrrar ondulou a língua, eriçado. Lizart, ou Liza, era de fato uma bela jovem, e o réptil nutria um estranho interesse pela filha do patrão. — O Duque nos fez um pedido esta madrugada, encomendou cem espadas para os legionários que estão de passagem. Tudo deve ser entregue hoje.
— E deixou para fazer o pedido somente agora?
— Foi o que eu estranhei. — Kira comentou. — Pode me ajudar com os cabos?
— Claro. — Sentou-se na segunda baqueta e puxou uma lâmina.
— Vocês dois parecem que têm medo de trabalho! — Bago retrucou, cruzando os braços.
— Ei, estou acordado e trabalhando desde a madrugada! — Lembrou o jovem, com uma pedra de afiar em riste na direção do ferreiro. — E não dormindo até agora.
Ganhou da moça um tapa no ombro.
— Sabe o quanto foi difícil dormir com tanta martelada?
— Ah, — Kira riu com desdém. — claro, me desculpe.
— Vamos logo, terminem as espadas que já estão aí — Pediu o anão, mais brando. Estava cansado, apesar de tudo. Virou-se para os companheiros. — Vamos beber e comer alguma coisa, homens. E Kirsk. — Incluiu o Sisrrar. — O dia será ainda mais trabalhoso que a noite.
Os ferreiros subiram a escada deixando os jovens sozinhos, trabalhando.Quinze espadas estavam prontas quando todos retornaram vinte minutos depois, visivelmente melhores e mais bem humorados. Bago ficou logo surpreso.
— Continuem assim e terminaremos logo. — Elogiou, ou quase isso.
Todos recomeçaram os trabalhos em seguida, alimentando as chamas novamente.
A Espeto Vermelho não aceitou nenhum outro pedido naquele dia. Clientes apareciam vez ou outra, mas ou eram praticamente expulsos por Bago, ou amparados por Liza, que lhes agendava uma visita para o dia seguinte.
Três ferreiros e o chefe continuaram tratando dos metais enquanto outros dois passaram a cuidar periodicamente do carvão, do fogo e dos foles. As armas eram finalizadas por Kira e Liza, de mãos rápidas e habilidosas.
Ao fim do dia, surpreendentemente, a dupla terminava as últimas espadas. Os ferreiros, de mãos queimadas, respiravam ruidosamente e só queriam sair do calor ininterrupto. Bago aproximou-se dos dois jovens. Pousou a grande mão no ombro de Kira erguendo o braço todo, que terminava de afiar uma espada usando um disco de pedra que girava com movimentos de pedais sob a bancada.
— Entregará as armas, rapaz? — O cansaço lhe deixou mais calmo.
— Pode deixar comigo. — Aceitou sem questionar. Ao ver o estado do anão, não quis que fizesse qualquer outro tipo de esforço. — Só preciso do pergaminho para oficializar a entrega.
— Certo, vou buscá-lo lá em cima, — Virou-se para a moça de cabelos curtos. — Irá com seu irmão?
— Eu posso ir, sim. É melhor, assim ele não vai parar na primeira taverna que encontrar.
Kira a olhou com o canto dos olhos e lhe passou a espada afiada repentinamente, assustando-a.
— Ótimo. — O ferreiro disse apenas, antes de ir até as escadas e subir os degraus de madeira.
Retornou quando tudo já estava pronto. As cem espadas abarrotadas sobre a parte mais afastada da bancada eram levadas de duas em duas com cuidado por Kira e dois ferreiros até a pequena carroça da forja que esperava do lado de fora. O cavalo castanho que a puxaria era distraído por um terceiro homem, que segurava suas rédeas. Cintos e fivelas de uma sela velha apertavam a barriga do animal.
Quando a carroça fora totalmente carregada, Kira tomou as tiras de couro e Liza ficou ao seu lado. Viraram-se para Bago, que apenas assistia.
— Estamos indo, pai. — Avisou a jovem.
— Que Marraria guie seus passos e os apresse. Está tarde, pode não dar tempo.
— Vai dar, não se preocupe. — O rapaz disse apenas, tomando as rédeas para si e incentivando o cavalo.
Partiram sem demora pela rua calçada deixando a forja para trás.
A luz do dia dava adeus ao mundo e o escuro começava a prevalecer. As únicas fontes de luz eram as tochas e velas das casas que chegavam no exterior tênues e fracas.
— Será que vai dar tempo? — Liza perguntou ao olhar para o céu, começando a duvidar do sucesso da entrega.
— Não trabalhei o dia todo em vão. Eu vou entregá-las.
— Já é quase noite, Kira. — Fez um gesto mostrando-lhe o céu. — O castelo ainda está longe.
— É, talvez atrasemos um pouquinho. — Cedeu.
— E se o duque não aceitar?
— Liza, vai dar certo.
— Não nesse ritmo...
Kira suspirou e fez o cavalo parar, atraindo a curiosidade da garota. Pousou as mãos sobre a sela do cavalo, saltou e o montou.
— Então suba.
— E Feroz vai aguentar?
— Você não conhece a potência desse cavalo. — Deu tapinhas no pescoço do animal. Liza deu de ombros para si e subiu, dividindo o assento. Com certa hesitação, segurou a cintura do garoto sem camisa. — Desculpe, estou um pouco sujo.
— Um pouco? — Retrucou, torcendo o nariz.
— Espero que a carroça esteja bem presa.
— O que?
— Segure-se! — Então agitou a rédea com força e esporeou o animal com os calcanhares.
O pequeno cavalo pareceu despertar, relinchando e acelerando as patas.
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O Bastardo da Rainha
FantasyKirart foi criado e educado pelo anão Bago Blacsmal, dono da Espeto Vermelho, a famosa forja do ducado de Carvalho Velho. Conviver com armas e ouvir histórias de guerreiros viajantes a vida inteira deixou Kira fascinado pelas campanhas militares à...