O grupo viajou por mais alguns dias, completando uma semana exata na estrada real. Dentre os poucos momentos de tensão ocorridos naquele tempo de viagem, destacou-se o ataque de quatro lobos de pelos acobreados, aparentemente famintos, que atacaram rapazes mais ao fim da comitiva. Um jovem em especial sofreu bem mais com o ataque, tornando-se alvo justamente por ter contra-atacado primeiro. Quando os animais foram abatidos, encontrava-se ferido e abalado psicologicamente. Usando seus poderes divinos, Endrik cuidou de seus ferimentos e o acalmou.
O clérigo, por sua vez, passava a maior parte do tempo meditando, refletindo consigo sobre o futuro. Como maior responsável pelo grupo e seu líder, foi instruído pelo pai e sabia tudo que deveria ser feito ao longo da viagem pelo reino, durante o período de batalhas, após cruzarem Ponte e chegarem ao Norte de Dourarado.
Mas algo em especial preocupava o jovem naquele momento: o tempo.
Começou quando teve um sonho na madrugada do terceiro dia. Nele, viu um lugar desolado, ruínas, onde um milhar de homens vestindo túnicas laranjas pareciam controlar o chão com movimentos braçais, atirando rochas e espinhos de pedra contra guerreiros de armaduras claras e brilhantes, que defendiam-se com espadas e escudos aparentemente mágicos. Ao fundo, uma voz contava-lhe que aqueles eram magos treinados em Dourarado, um exército místico que seria inserido na guerra para defini-la de uma vez por todas dali há um mês.
Bons clérigos comumente tinham visões do futuro ao invés de meros sonhos, e, obviamente, o jovem reconheceu o acontecimento como tal.
A partir de então, passou a ver cada minuto gasto como um Escudo de Valor dourado perdido. Dentre algumas controvérsias, a ideia de realizar um desvio e cortar caminho lhe veio à mente como a solução para seus problemas, e era exatamente o que estava disposto à propor, convocando todos os líderes para uma reunião emergencial em sua tenda no começo da sétima noite.
Enquanto a maioria descansava e comia suas porções do jantar, Endrik uniu em sua alta tenda seis seres: Bak, Ellia, Isteilon e Kira, já tido como o líder dos guerreiros montados. O quinto era o jovem e tímido minotauro Braulio, que acompanhava a comitiva sempre por último e em silêncio desde que partiram. O sexto, por fim, era o líder dos demais guerreiros, Bastian, um rapaz alto, louro, de olhos castanhos e pele clara, ótimo no manuseio do escudo e da lança, eleito pelos companheiros após justamente ter dado cabo dos lobos heroicamente sozinho.
- Obrigado por virem. Peço desculpas por tirá-los de seus merecidos descansos, - Pediu Endrik, iniciando a reunião. - mas, dessa vez, tenho um assunto que desejo muito tratar com vocês e não pode esperar.
- Lá vem ele... - Comentou sua irmã, mais para si mesma. Em pouquíssimo tempo, a aparência da jovem mudara assustadoramente rápido: Seus cabelos longos e lisos estavam esbranquiçados, bem como cílios e sobrancelhas. A pele também jazia mais pálida. Já os olhos, antes escuros, ganharam tons de cinza mais claros. De alguma forma e por algum motivo, a magia branca transformara a aparência da jovem drasticamente.
Os demais ficaram em silêncio, esperando o líder continuar.
- Eu tive um sonho. - Disse-lhes, e então contou sua visão. Quando terminou, viu que todos ficaram surpresos, especialmente a maga.
- Oh, Deusa. - Murmurou ela.
- Quando teve este sonho, senhor? - Quis saber Isteilon.
- No terceiro dia.
- E somente agora decidiu revelar para nós? - Kira estranhou.
- Sabendo do que aconteceria, todos esses dias passei refletindo sobre o que faria à respeito. Já que, como estamos indo para a guerra, também nos envolve.
- E chegou à alguma conclusão, senhor? - Bak perguntou.
- Em parte, sim. Ainda há outras questões. - Suspirou brevemente. - Nosso problema maior é o tempo. Em trinta dias, os magos estarão lutando contra os legionários. Devido à isso, nosso objetivo de chegar no litoral norte de Dourarado deve ser cumprido o mais rápido possível para que não sofremos com isso.
- Nosso objetivo ainda será erguer um segundo Ducado? - Bastian questionou.
- Isso acontecerá apenas quando vencermos e a guerra terminar, meu pai deveria ter dito à vocês que não seria tão simples. Na verdade, nossa real missão é acumular riquezas e tomar terras, tornando-as territórios lançartanos. Aliás, os outros ducados mandam com frequência grupos armados para fazerem o mesmo, e pouco à pouco estamos ganhando mais espaço. Eu deveria lhes contar apenas quando chegássemos nas Terras Douradas, mas, de qualquer forma, estão cientes agora.
- E o que sugere para que possamos cumprir nosso objetivo mais rápido?
- A ideia de realizar um desvio seguindo direto para o fronte ainda me parece válida. O que vocês acham?
- Desvio? - O líder dos guerreiros pareceu surpreso. Não ouvira nada parecido até então. Os demais ficaram menos, mais ainda assim espantados.
- Vamos demorar trinta dias para cruzar a estrada real, senhor? Acho improvável. - Bak avaliou.
- Somos um grupo grande e lento. Ainda temos um longo caminho além da floresta, a estrada faz curvas demais pelo reino inteiro. Sobre Ponte, então, nem preciso dizer algo. Penso, sim, que quando chegarmos no campo de batalha, será tarde demais.
- Senhor. - Pronunciou-se Kira, erguendo a mão, atraindo olhares dos presentes. - Isso é algo realmente sério para tratarmos à grosso modo. Uma informação deste nível não deveria ser enviada para a Rainha?
Silêncio por alguns segundos.
- Creio que não fui o único clérigo à ter tal presságio. - Rebateu o loiro. - Profetas muito mais poderosos rondam a Rainha, nossa deusa deve ter enviado esta mensagem para eles também. Quem sabe, eu mesmo tenha recebido um pouco tarde.
- Ah. Entendo.
- E então? - Endrik olhou para todos. - O desvio é minha proposta, mas estou disposto a ouvir outras ideias. - No fundo não estava, mas devia ser justo.
- É mesmo preocupante... - Murmurou Isteilon.
Nenhuma opnião veio em seguida.
- E como faríamos, exatamente? - Adiantou Bak, aparentando interesse.
- Seguiríamos em linha reta para o fronte, ignorando a estrada e passando o menor tempo possível nas cidades no caminho. O maior obstáculo será este trecho restante da floresta, e para cruzá-lo, criar uma estratégia para nossa defesa seria uma boa opção. Porém, na maior parte do tempo, meus dois companheiros clérigos e eu usaremos preces calmantes e persuasivas para aquietar qualquer que seja o atacante. Assim não atrairemos mais ódio animano.
O centauro assentiu.
- Então eu concordo. - Encerrou. - No fim, me parece uma boa saída.
- Senhor, apenas acelerar o ritmo não bastaria? - Questionou Bastian.
- Seria mais cansativo, Bastian, forçar todos a andarem mais rápido carregando tanto peso por um percurso tão longo. Com o desvio cortaremos um ótimo caminho e pouparemos esforços para a batalha.
O rapaz apenas assentiu.
- Certo, eu concordo. - Disse Kira, após pensar um pouco.
- Contanto que cheguemos à Dourarado vivos e à tempo, está ótimo. - O tom de voz de Isteilon saiu calmo como sempre. O elfo não aparentava tanta preocupação como os demais: ou sabia controlar bem suas emoções, ou simplesmente não dava importância para aquilo.
Braulio, que quase se curvava para manter-se afastado do teto da tenda e não espetá-lo com os chifres, somente bufou.
Ellia, como sempre, não parecia muito satisfeita.
- Então, que seja. - Deu de ombros, indiferente.
- Ótimo. - Endrik esticou a coluna. - Líderes, conversem com os demais. Avisem que, amanhã, mudaremos nosso rumo. Dispensados.

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O Bastardo da Rainha
FantasyKirart foi criado e educado pelo anão Bago Blacsmal, dono da Espeto Vermelho, a famosa forja do ducado de Carvalho Velho. Conviver com armas e ouvir histórias de guerreiros viajantes a vida inteira deixou Kira fascinado pelas campanhas militares à...