3. Meio-Irmãos, ou Algo Mais

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Kira e Liza esperaram pacientemente o androete retornar para o interior do castelo e o portão ser fechado atrás dele.
Ambos deixaram escapar longos suspiros de alívio.
— Achei que nunca fosse acabar... — Confessou a moça. — Por um instante pensei que ele rejeitaria as espadas.
— De uma coisa tão imprevisível como essa não se pode esperar nada. —  Comentou o rapaz. — Tentei somente esconder meus tremeliques de medo. Nem sei como disse aquilo.
— Foi útil. Acho que pesou na decisão dele.
— Que bom, agora podemos comemorar nosso sucesso? — Subiu novamente em Feroz, que não pareceu se assustar com a máquina errante em nenhum momento. — Onde fica a taverna mais próxima?
— Achei que soubesse a localização de todas as tavernas da cidadela. — Estranhou.
— E sei. Mas, sabe, só queria saber se você sabia.
— Hm, é melhor irmos logo. — Sorrindo, subiu no cavalo. — Se está enrolando a língua agora, imagino quando estiver bêbado.
Kira riu e agitou as rédeas de Feroz.


A Cordeiro Saltitante era a taverna que ficava mais perto do castelo, situada na populosa região central do ducado. Consequentemente, a maior e mais movimentada da cidade. No andar de cima funcionava uma hospedaria para mercadores ou viajantes cansados, ou apenas para soldados bêbados demais para voltar para casa.
Kira amarrou seu cavalo em uma das estacas próprias para animais na lateral do estabelecimento e entrou acompanhado por Liz. Mesmo despido da cintura para cima, o rapaz não teve problemas.
As vinte mesas estavam quase todas ocupadas por pelo menos quatro ou cinco clientes. Naquele horário em especial, a maioria era composta por guerreiros e lanceiros armados e armadurados, que aproveitavam a pausa da troca de turnos na vigilância da cidadela para distrair-se e comemorar algo em nome de um companheiro presente.
Garçonetes, mulheres belas e bem cuidadas para os padrões comuns, andavam de um lado para o outro carregando bandejas com refeições quentes e canecas cheias até a boca de cerveja barata e escura. ignoravam, ou tentavam ignorar, os gracejos e flertes dos clientes. Por fim, músicos tocavam harpas e alaúdes, cantando em conjunto com um alegre grupo de lanceiros, bêbados e provavelmente envoltos por magias sutis de animação vindas da música.
Kira e Liza foram para uma mesa mais afastada da barulheira e se acomodaram. A bela jovem atraiu alguns olhares e o rapaz fingiu não perceber.
— Melhor não demorarmos muito. — Sugeriu ela. — Podemos pedir algo para comer no caminho e partir.
— Como quiser, mas antes quero pelo menos beber uma caneca. — Observou os cantores embriagados por algum tempo com um meio sorriso no canto da boca.
— Então, Kira... — A jovem começou de repente, atraindo sua atenção. — Ainda pretende ir para Buraco Negro?
— Sim, com certeza. — Respondeu, calmo e seguro. Buraco Negro, ou Cidade dos Saques, como era conhecida naqueles tempos de guerra, ficava nos longínquos territórios de Dourarado, perigosamente perto da fronteira. A grande cidade fora construída no interior de uma ampla cratera, criada pela queda de um meteoro séculos atrás. Junto às rochas do detrito foram encontrados minérios misteriosos de propriedades estranhas, que deixaram todo o solo ao redor impregnado com manchas escuras e permanentes, exterior e interiormente. Parte de tais minérios únicos foram vendidos para curiosos à preços exorbitantes e a cidade foi acumulando riquezas rapidamente, crescendo com a chegada de curiosos e interessados. Com as invasões sob comando da Rainha das Lanças, Buraco Negro passou a ser saqueada com frequência, mas seus tesouros, diziam, estavam longe de se esgotar. — Lutar em Dourarado pode me render títulos e ouro, e é o que faço de melhor depois de forjar.
Com um sinal de mão, chamou uma garçonete. Pediu uma caneca da bebida escura que era servida no bar. A mulher foi buscá-la.
— Você não precisa se arriscar tanto. E essa terra de riquezas infinitas pode não ser bem o que se diz por aí.
— O Duque é o que é hoje por que lutou por lá. Posso tentar a sorte também.
— Kira, escute-me. Você pode crescer aqui. Assumir a forja quando Marraria levar papai para o Plano Oposto e...
— Sinceramente, Liz, não pretendo passar minha vida martelando metal com a cara enfiada em um forno.
— Você não se importa com papai?
— Pelo contrário, farei isso por ele também. Bago é muito importante para mim, me criou e me educou como filho. Quero que tenha um descanso dessa vida dura.
— E eu? — Perguntou, tentando sua última cartada. — Não se importa comigo? Ou com o que aconteceu naquela noite, o que sentimos um pelo outro?
— Você sabe o quanto eu me importo.
— Se você morrer naquelas terras, se não voltar... Papai não vai aguentar, muito menos eu. Ele pode parecer durão, mas não vai.
— Eu não vou morrer, pare de dizer isso. Vou voltar com conquistas e então teremos a vida que merecemos.
— Você nunca foi tão ingênuo assim. O que te fez mudar?
A garçonete retornou com uma bandeja de metal mal polido trazendo algo em seu topo. Com um sorriso, entregou a caneca para o rapaz e seu foi. Discretamente, fitou as curvas femininas levemente destacadas sob as vestes curtas. Bebeu dois goles da cerveja preta.
— Não como se eu...
— Olhou para a bunda dela? — Liza questionou, sem acreditar.
— O quê? — Perguntou automaticamente, pego de surpresa. Abaixou a caneca de cerveja. Olhou para ela com uma linha de espuma sobre o lábio superior.
— Eu não acredito que você olhou para ela, na minha frente.
— Não exagere, foi só...
— Nem vai tentar negar!? — Um sorriso incrédulo se mantinha em seus lábios, parecia tão surpresa quanto com raiva.
— Olha só, enquanto pede alguma coisa para levar, vou me juntar àqueles lanceiros. — Apontou para os homens que cantavam alegremente. — A fome deve estar afetando você. E aliás, adoro essa música.
Bebeu o restante da cerveja com pressa, fez uma careta e caminhou até os lanceiros já pegando o trecho da canção e acompanhando-a.
Liza apenas suspirou e chamou outra garçonete.

O Bastardo da RainhaOnde histórias criam vida. Descubra agora