12. As Lágrimas Do Anão

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Os treinos árduos não deixaram Kira se preocupar com qualquer outra coisa. Foram trinta longos dias onde aprendeu não só o uso das armas, mas também disciplinas como Estudo da Natureza, Línguas e História, esta última sendo a mais explorada. Descobriu coisas sobre as outras raças de Tenória, sobre os nove reinos do continente e as terras inexploradas além-mar. Aprendeu, principalmente, assuntos sobre a grande Dourarado e Ponte: Terras estreitas de um pequeno reino, chamado de Tripa antes da guerra. O trecho era o único caminho por terra que ligava os territórios do Leste aos do Oeste, e sua fronteira direita unia-se exatamente à esquerda do Reino Dourado. No fim das contas, era realmente uma ponte, tornando-se também o palco da Guerra de Travessia, onde os conflitos ocorriam incessantemente entre os guerreiros arcanos da poderosa Legião dos Bravos, regimento militar de elite comandado pela Rainha das Lanças, e as forças do Rei Aurum, que combinava magos laranjas à tropas de lanceiros. Nos primeiros anos de embate, exércitos enormes chocavam seus escudos, espadas, lanças e magias uns contra os outros, muitas vezes invadindo e arruinando cidades inteiras, usando-as como campos de batalha durante as pelejas, matando incontáveis civis tripenses no processo. Mas, ao decorrer do tempo, uma década exatamente, manter o número de combatentes elevado tornara-se quase impossível, obrigando os reinos à reinventarem suas estratégias. Logo passaram à prezar pela qualidade dos combatentes.
Por tal mudança, naquele momento da guerra, as tropas eram bem menos numerosas e muito mais bem preparadas, com guerreiros habilidosos e particularmente destrutivos. As batalhas aconteciam de repente e em vários pontos ao mesmo tempo, com legionários serventes à Rainha visando chegar à Peneira, o segundo cenário da batalha.
A Peneira era a última linha de defesa do Rei Aurum, senhor da Terra do Ouro. Um muro de oito metros de altura, erguido apressadamente ao decorrer dos primeiros anos de conflito, formava um anel de proporções quilométricas ao redor da capital, Coraçouro, e várias outras cidades. Seu topo e arredores eram guarnecidos e vigiados por milhares de guerreiros, parte maior do exército. A estrutura ganhara tal apelido por um motivo óbvio: Pouquíssimos eram os que a atravessavam com vida, há anos que não acontecia. Mas, se trespassada, o caminho para a capital ficava livre já que o Rei não tinha tropas guardando seu interior. Embora, em Couraçouro, houvesse uma secreta defesa igualmente impenetrável graças à Magos Laranjas doutrinados também na arte da esgrima.
Kirart, ao saber da existência da grande muralha e suas defesas inabaláveis, questionou a importância daquela guerra no fim das contas. A Rainha deveria estar louca se achava um simples objeto, ou algo do tipo, mais importante do que seus legionários, seu ouro e provisões. Certa vez, perguntou para o velho instrutor teórico do grupo se, eventualmente, teriam de lutar na Peneira. O idoso respondeu que provavelmente não, e o rapaz ficou menos receoso.
Contudo, no fim daquele mês, o rapaz ficou orgulhoso consigo mesmo. As atividades físicas deram resultados, se sentia mais habilidoso, disposto e forte. Saiu-se bem com as armas e nos treinos à cavalo com o Duque, destacando-se um pouco.
Seria um bom cavaleiro.
Na noite anterior à viagem, foi organizado um banquete para os concluintes. O rapaz não quis ficar muito tempo, apenas conversou um pouco com alguns colegas, comeu petiscos assados de carnes caras, bebeu duas canecas de boa cerveja e descobriu o horário que sairiam na manhã seguinte.
Preferiu voltar logo e aproveitar o tempo que tinha em casa com Bago e Liza. Porém, quando entrou, não viu nenhum dos dois. Deviam ter ido para suas camas cedo, imaginando que ele voltaria somente de madrugada.
Suspirou e foi até seu quarto. Surpreendeu-se ao encontrar o velho anão perto de sua cama.
— Pensei que entraria por esta porta bêbado. — Disse ele ao se virar. — Saiu faz tão pouco tempo, por que voltou cedo?
— Queria ficar com vocês mais um pouco antes de partir.
— Ah... Entendi. — Ficou em silêncio por alguns segundos. — Então sente-se, rapaz. Se voltou, terá que me ouvir falar.
— Tudo bem. — O jovem sentou-se.
— Você viajará amanhã, não é?
— Sim.
— E que rota vão seguir?
— Vamos pela estrada real até o quartel general da Rainha, no fronte. Depois atravessaremos Ponte e seguiremos para o norte de Dourarado, lutar por terras e saques no litoral até o fim da guerra. Foi o que disseram para nós.
— Fim da guerra?!
— É, vai demorar um pouco.
— Minha Deusa... Mas não irão para a Peneira, certo?
— Pelo que sei e foi discutido, não.
— Menos mal... Mas cruzar Ponte ainda é arriscado demais, filho. — Poucas vezes o anão chamava-o de filho, assim como Kira raramente o chamava de pai. — Fora a longa viagem repleta de perigos e as inúmeras batalhas que lutará.
— Eu sei, também estou preocupado, não vou mentir. Mas foi o que escolhi, certo? Tenho que me manter confiante.
— Você ainda pode voltar atrás com essa escolha, Kira. — Bago preparava-se para lançar sua carta final, que, na verdade, era algo que escondia do rapaz havia muito tempo.
— Não é tão simples. Não posso virar para o Duque e dizer que desisti, o senhor mesmo sabe disso.
— Existe um motivo maior para você deixar essa ideia maluca de lado, e com certeza Enrique entenderia.
— Que motivo, Bago? — Um tom de preocupação mudou seu tom de voz.
— Há muito tempo, acontecimentos tristes fragmentaram sua família. Seu pai, antes de ir lutar, me pediu para cuidar de você. Mas agora que você vai para a guerra, não vou ficar de braços cruzados e vê-lo partir sem saber a grande verdade que pode mudar sua vida.
— Fale logo. — Tentava esconder a apreensão da melhor forma que conseguia.
— Certo dia, anos atrás — Começou o anão, falando com pesar. — O Rei Morto veio visitar o jovem herói Henrique Brags e ver como andava a construção do mais novo Ducado do reino, onde antes ficava apenas uma pequena e pobre vila. No último dia de sua estadia, veio até esta forja e cortejou sua mãe. Seu pai se impôs, mas o que poderia fazer contra o Rei? — Outro suspiro. Kira o ouvia em silêncio absoluto. — No fim do dia ela deixou você e ele para trás e partiu para a capital. E no fim da semana, foi coroada rainha.
— Espere, minha mãe me abandonou?
— Sim.
— Pensei que tivesse morrido.
— Não lembro de ter dito isso.
— E meu pai, o que aconteceu com ele?
— Ah, ele ficou arrasado. Traído e largado pela mulher que amou verdadeiramente. Mas o tempo passou e ele conseguiu se recuperar. Tinha você para cuidar e se preocupar. Porém, quando tudo voltava aos eixos, foi convocado para lutar na guerra.
— Minha mãe não passava de uma vadia. — Disse o rapaz. Bago arregalou os olhos ao ouvir tal insulto. — Trocou meu pai sem hesitar, me deixou para trás e se deixou ser seduzida apenas por luxos.  — Contou nos dedos. — Nem sei seu nome e já sinto nojo.
Kira sempre fora assustadoramente desapegado à sua verdadeira família. Respeitava Bago e amava Liza, mas não sentia absolutamente nada pelos pais de sangue. Não lembrava de seus rostos nem de seus nomes, simplesmente não se importava com eles.
— Não está surpreso?! — O anão quis saber.
— O Rei Morto coroava uma mulher como rainha com mais frequência do que trocava de roupa. Deve ter sido só mais uma que...
— Qual é o nome da sua mãe, Kira?
Ele pensou um pouco. Realmente não se lembrava, fazia muitíssimo tempo.
— Sabe que não sei. Marlinda...?
— Melindrena. — O anão corrigiu.
— Ah, Melindre... — Os olhos do jovem abriram-se, surpresos. — Não...
— Melindrena, a Rainha das Lanças.
— Não.
— Sua mãe é a rainha que governa agora, Kira. A...
— Não.
— ... Heroína que deu fim àquele rei corrupto e nos libertou.
— Não.
— Kira, escute-me!
— Não! — O rapaz retrucou. Perguntava-se como nunca se dera conta, sentia-se idiota. Mesmo que a distâcia da capital e a pouca intervenção naquela região de ducados independentes e feudos faziam-no esquecer com frequência da realeza, era algo importante e simples demais.
— Me entende agora?
— Espere um pouco. — Pediu calma. Pôs as mãos na testa por um instante. Pensou um pouco para organizar tudo em sua mente e falar sem gaguejar. — A Rainha das Lanças é minha mãe?
— Sim.
— Tem certeza disso?  — Duvidou.
— Absoluta.
— Certo, tudo bem. — Por algum motivo, uma preocupação surgiu em sua mente. — Bago... Ela teve outros filhos, certo? — Divagou consigo mesmo, olhando para o chão. — Os príncipes, a princesa. — Olhou para Bago. — Sou um bastardo.
— Bom...
— Ela me deixou, não foi? — Ficou subitamente nervoso. — Deusa, sou um bastardo...
A preocupação do rapaz era justificável. Conhecia a fama dos filhos bastardos e de suas vidas tristes e breves, principalmente as daqueles com sangue nobre correndo nas veias. O nível de rejeição era altíssimo, vistos pelas pessoas apenas como acidentes que deveriam ser erradicados. Muitos, sem rumo, tornavam-se servos, mercenários ou ladrões, podendo esconder e ignorar totalmente suas origens pois, se descobertos, eram caçados e executados sem demora.
O rapaz teve medo do que poderia acontecer com ele e Bago sentiu a sensação.
— Não se preocupe. Nada aconteceu até agora e não acontecerá. Você pode se aproveitar disso.
— Aproveitar?
— Ao invés de se esconder, mostre-se. Deixe clara a sua existência e reclame seu lugar na corte real. A Rainha reina sozinha, nada a impediria de acolher você.
— O que o senhor bebeu? Ficou maluco? Gostaria de falar com Bago, por favor, se não for incomodar.
— Não é hora para sarcasmos, Kira.
— O que tem na cabeça? — Continuou — Ela tem grandes inimigos, nobres opositores e antigos aliados do Rei Morto. Se descobrirem minha existência, morrerei ainda mais rápido do o normal. — O rapaz suspirou. Franziu a testa.
— É diferente, rapaz. Você é filho de uma rainha, um possível herdeiro e concorrente ao trono. Contanto que sua aparição seja no momento certo, os nobres não poderão fazer nada contra você.
— Não vejo diferença alguma. Aliás, não vou voltar correndo para os braços daquela que me abandonou e esqueceu meu pai.
— Parou para pensar no que ela fez com o Rei Morto por este reino? Ela o fez pelo povo, nos libertou! Não é o monstro que você está imaginando.
— Isso não me importa. — Exclamou. — Agora que sei o que aconteceu, não posso, e nem vou, deixar de lado o que ela fez com meu pai e comigo.
— Kira...
— Existe a chance de mais alguém saber dessa história?
— Não. Quando souberam que sua mãe tinha ido embora com outro homem, as pessoas acharam que fora um nobre rico da comitiva do rei. Ele teve muito cuidado para não ser visto ou reconhecido ao vir para cá.
— Então vou deixar tudo como está. Não quero morrer nem que aquela vadia saiba que estou vivo. — E então atacou: — Você não precisava ter me contado nada. Me sentia tão bem, agora estou preocupado e inseguro. Não mudou minha vida, só a deixou mais complicada. Onde achou que chegaria com isso?!
Bago tremeu.
— Eu só... — Kira estranhou a voz, nunca a ouvira naquele tom. — estou desesperado. Me desculpe, só quero que você não vá. — Seus olhos encheram de lágrimas. O rapaz a sua frente chegou a se assustar.
— Bago...?
— Eu perdi seu pai e estou prestes a perder você também.  Essa foi a forma que encontrei de tentar te convencer a ficar, mas foi inútil e estúpido! Eu fui estúpido!
— Ei! — Tentou pará-lo agarrando seus ombros. Desceu para o chão, ficando de joelhos. Encarou-o nos olhos.
— Você tem que ficar aqui, comigo e com sua irmã. — E suplicou: — Por favor, filho, não posso perder você também. Eu não aguentaria.
Kira o abraçou. Estava emocionado, mas assustado acima de tudo por ver o anão naquele estado. Ao mesmo tempo, sentiu-se de certa forma especial e mal consigo mesmo por ter sido tão rude. Porém não podia recuar.
— Eu simplesmente não posso voltar atrás agora, o senhor não entende? Já fui longe demais.
— Eu já entendi! — Confessou. Os braços fortes do pequeno ferreiro apertaram o querido filho. — Mas não quero aceitar. — Ficaram abraçados por alguns segundos em silêncio. — Ao menos me prometa que voltará para casa vivo. Por mim e por Liz.
— Eu prometo.
— E que lutará com toda a força que tiver, fará tudo ao seu alcance para manter você e seus companheiros vivos e realizar seus objetivos. Prometa!
— Certo, eu prometo.
— E que não vai trair Liza com a primeira vagabunda de taverna que aparecer.
Kira afastou-se e o encarou.
— Como?
As lágrimas sumiram, restando resquícios úmidos na barba cor de bronze. Fungou.
— Descobri já faz um tempo. É errado dois jovens fazerem tais coisas antes da união, poderia matar vocês com uma surra de cinto de couro. — O rapaz encolheu os ombros. Bago continuou, mais brando:— Mas um faz muito bem ao outro, sempre fizeram, e tenho certeza que se amam. E antes você, um bom rapaz que sempre me ajudou, do que qualquer desconhecido. Vocês não são irmãos de sangue no fim das contas, então não é de todo ruim.
— Eu... nem sei o que dizer.
— Então não diga.  Faça. — O ferreiro sorriu. — Se voltar, deixarei que se casem.
— O quê?!
— Libertinagens na minha casa? Somente se os dois unirem perante Marraria e jurarem amor eterno um ao outro.
Kira suspirou e sorriu. Mais um motivo pressionando-o para retornar vivo.
— É justo.
— Agora vá dormir. A viajem será longa.
— Ótima ideia... — Acomodou-se na cama sem pressa. — Até amanhã, Bago.
— Até, filho. — Despediu-se, deixando o quarto.
O rapaz fechou os olhos e relaxou. Tentou não pensar muito na longa conversa que teve, deixou para assimilar tudo no dia seguinte com mais calma ao longo do tempo. Cansado, dormiu rapidamente.

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