15. A Deusa e a Rainha

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Endrik acalmou o jovem pousando a mão em sua testa e dizendo-lhe palavras gentis e reconfortantes, usando numa prece pequenas doses de persuasão. Checou se ele tinha algum ferimento, mas não achou nada de preocupante.
O guerreiro pareceu mais calmo em seguida. O clérigo ajudou-o a levantar.
Os escultores nas carroças checaram sua armadura, amassada com pequenos furos onde o veneno corrosivo pingou, mas nada podiam fazer para restaurá-la. Kira, ao assistir a cena, teve uma ideia.
Conduziu Feroz até eles, atraindo alguns olhares. Desceu do cavalo e os escultores e o rapaz esperaram que falasse.
— Que aperto... — Comentou.
— Foi uma piada? — O rapaz retrucou.
Kira olhou para os escultores.
— Temos ferramentas para arrumar isso?
— Sim. — Respondeu um. — Mas também temos armaduras inteiras sobrando nas carroças, então...
— E desperdiçar estas placas? — Tocou os amassados, usando sua experiência de ferreiro. A sisnora não teve tanto tempo para aplicar toda sua força, ou então aquele rapaz não estaria respirando naquele momento. — Algumas marteladas quentes e elas ficaram novas.
— Não vou ser o único a andar com uma armadura desamassada.
— Espere alguns dias de viagem. Vamos comemorar como loucos ao encontrar armaduras nesse estado. — E continuou: — É melhor não trocarmos de armadura por causa de pequenas falhas. Precisaremos delas mais tarde.
— Bom...
— Se você visse a qualidade de algumas que chegam na Espeto Vermelho... — Deu um sorriso. — Parecem que foram espancadas por minotauros.
Até os escultores deram um sorriso.
— Ah, você é o filho de Bago! Então deve saber do que está falando, ele é um ótimo ferreiro. Meu avô comprou dele uma adaga que é afiada até hoje.
— Isso deve ter mais a ver com a encantadora esposa dele. Na época, eles ainda deviam estar juntos.
— O quê?
— Não é nada. Nos falamos depois para eu ver isso?
— À noite.
— Ótimo, à noite então.
— Agora é melhor nos apressarmos, ou então ficaremos para trás.
Quando se deram conta, a companhia já andava uns vinte metros na frente e os escultores já os seguia.
— Droga... — Kira resmungou. Pulou em Feroz. — Sobe aí.
Sem hesitar, o segundo rapaz obedeceu.
Os dois foram galopando até o grupo, deixando os escultores para trás. O jovem guerreiro saltou do cavalo ainda em movimento e Kira desacelerou apenas quando chegou perto dos demais cavaleiros. Bak o encarou com uma expressão séria, mas não disse nada.
Escondido entre árvores, Erik xingou a si mesmo por ter perdido a boa oportunidade de ter acabado com o assassino de seu bando. Mas, ao ouvir a conversa, prometeu a si mesmo que ele não escaparia daquela noite.


O grupo seguiu a viagem mais atento, em vão, pois nada aconteceu. A tarde tediosa pareceu demorar anos para passar, mas, quando a noite chegou, os rapazes sentiram a imensa falta que o sol fazia.
A escuridão era quase perturbadora, as árvores nas laterais da estrada eram apenas sombras. O fogo foi providenciado bem tarde, atrasando um pouco o modesto jantar do grupo, que não se tratou de assados, fora pães e frutas como Bago dissera. Mas, obviamente, não poderiam comer no escuro. Se reuniram perto da estrada, no lado esquerdo.
Três fogueiras estalavam entre os jovens, espalhados em círculos junto ao fogo.
Kira comeu suas porções e em seguida conversou com um escultor. Vasculhou baús na segunda carroça e encontrou um martelo de cabeça larga, perfeito para os reparos que precisava fazer. Voltou e procurou o rapaz atacado pela sisnora.
— E então, ainda vai querer reparar os amassados? — Perguntou quando o encontrou. Ainda sentado, o rapaz se virou.
— Ah. Claro.
Levantou-se. Ainda mastigava o último pedaço de pão.
— Espere.
— O que foi?
— Tire a armadura e coloque perto do fogo. Vai ficar mais fácil de martelar.
— Ahn... É, faz sentido.
E obedeceu. Kira acabou ajudando-o com as travas. Colocaram o metal próximo às chamas tendo um certo cuidado e alguns olhares caíram sobre eles.
— E agora?
— Agora esperamos. — O rapaz agitou o martelo, sem ter onde guardá-lo.
— Quer dar uma volta enquanto isso?
— Não é arriscado? — Ele estranhou.
— Temos fogo agora. Os seres vão pensar duas vezes antes de atacar.
O jovem ferreiro pensou um pouco. Deu de ombros.
— Então vamos.
O outro apenas assentiu.
Passaram por duas outras fogueiras, conversando pouco sobre assuntos diversos. Sem perceber, afastavam-se cada vez mais, até que um repentino barulho em folhagens próximas os fizeram parar e tremer de susto.
Kira hesitou por um segundo e puxou a longa adaga sob a braçadeira maior. Deixara suas espadas junto à Feroz no acampamento.
— Bom esconderijo.
— Shh!
Olharam ao redor, mas o barulho não viera dos arbustos por perto, e sim do topo de uma árvore acima deles.
Apoiado em um galho, Erik lambeu os lábios escuros e apertou o punho de sua adaga, mirando exatamente a nuca de Kira.


Melindrena despertou com o próprio grito de medo e espanto. Seus cabelos pretos como piche estavam desgrenhados e os olhos âmbar, cheios de lágrimas. Gotículas de suor escorriam pelo corpo, umedecendo o colchão confortável.
Tivera um pesadelo horrível como nenhum outro, e as únicas cenas ainda frescas na memória eram de seu primeiro marido, o único homem que realmente amara, ser decapitado à espada pelo Rei Morto, que ainda carregava a lança mágica dela cravada na cabeça, desfigurada.
O espaçoso quarto estava escuro e silencioso. Não havia janelas, e sim grandes arcos nas paredes que davam em sacadas com lindas vistas para as extensas terras do reino. Ficava no topo de uma das cinco torres do palácio, a maior dentre elas.
A rainha olhou ao redor e acalmou-se ao perceber que estava sozinha, segura e bem. Fazia frio, ventos entravam por todos os lados e as cobertas pesados jaziam no chão. Suspirou e levou as mãos aos olhos. Estava cansada daqueles pesadelos horrorosos, que tornaram-se frequentes desde que fizera um pedido para uma certa divindade.
Assim que tentou apanhar uma das cobertas, antes mesmo de pensar em qualquer coisa, uma voz irrompeu em sua mente, invadindo-a de tal modo que deixou-a tonta e desnorteada como se tivesse levado um soco.
Era um som feminino, sereno, calmo porém firme.
"Seu filho agora sabe de seu passado. Sabe quem você realmente é, como me pediu."
— Marraria...? — Pareceu um gemido.
"E corre perigo. Decidiu ir para a guerra. Morreria agora mesmo se eu não o tivesse protegido."
— Guerra?!
"Já é tempo de trazê-lo para a capital, os outros Receptáculos já estão à caminho. Por precaução, ele ficará sob meus cuidados. Vou tentar mantê-lo vivo, mas muitos perigos o aguardam e, nestes tempos de instabilidade etérea, já não moldo o destino tão facilmente quanto antes."
— E-Entendo, mas eu posso cuidar disso. — Melindrena pareceu recuperar-se rapidamente. — Pode ser um Receptáculo, mas ainda é meu filho. Será até mais fácil do que pôr uma deusa na frente dele e pedir para que lhe siga.
Silêncio.
"Você pode tentar, se quiser. Mas será desnecessário."
— Tentarei, sim.
"Salvarei meu guerreiro, Melindrena. Apenas não me atrapalhe e terá o que quer."
— Como quiser, minha deusa. — Notou que estava de olhos fechados. Quando os abriu, nenhuma resposta retornou.
Levantou-se, apressada, e foi até um biombo dourado e repleto de ornamentos. Puxou o primeiro vestido que encontrou e vestiu-se com rapidez.
Ansiava por aquele momento havia anos, mas não esperava que acontecesse tão repentinamente.
Era a hora de reencontrar seu filho, e deusa nenhuma a impediria.



— Ei! — Bak surgiu entre as árvores. Os dois rapazes pularam de susto. Vendo que não era grande ameaça, suspiraram de alívio. — O que estão fazendo aqui?
Quatro metros acima, Erik se agarrou em um outro galho tentando evitar a queda no último segundo. Trincou os dentes de raiva.
— Só dando uma volta. — Kira respondeu.
— Querem ser pegos por outra sisnora, isso sim.
— Outra vez? — O segundo rapaz se permitiu dizer.
— Vamos voltar. Agora.
— E o que o senhor está fazendo aqui?
— Ah, eu... — O centauro franziu a testa. — Não tenho certeza... Fiquei com vontade de estirar as patas, eu acho. — Bateu duas palmas. — Agora vamos, antes que aconteça algo que não queremos.
Ele passou pela dupla, imponente como todo ser da raça. Os dois rapazes o seguiram sem nada dizer.
Erik praguejou todas as faces de Marraria que se lembrou.
No Plano Oposto, ela deveria estar apenas sorrindo.

O Bastardo da RainhaOnde histórias criam vida. Descubra agora