Uma dor nocauteante atingiu a mente de Marraria, fazendo a Deusa grunhir, curvar-se, franzir o rosto e pousar a mão na testa; Logo as batalhas que ocorriam dezenas de metros abaixo deixaram de ser importantes. Durante todos aqueles milênios de existência, pouquíssimas foram as vezes que sentira tal desconforto, portanto sabia bem o que significava.
Rasvart cometera alguma idiotice.
Assim que o incômodo abrandou, abriu os olhos com certa dificuldade. Temendo pelo pior, moveu a mão direita como se afagasse o ar, e, de acordo com os movimentos, uma densa névoa dourada começou a desprender-se dos dedos da manopla. Moldava um objeto alongado, gerando, por fim, um punhal dourado e de lâmina ligeiramente curva.
— Brisa, preciso que vá ter com o Humano.
— Chegou o momento, minha Deusa? — Estranhamente, uma voz infantil soou vinda da arma.
— Não, mas terá de ser antecipado. Sinto que algo ruim aconteceu e quero que se certifique por mim.
— Como desejar. Envie-me na direção certa que o farei.
Marraria segurou o punho da pequena arma "e "levantou-se", ficando de pé no ar. Girou e arremessou o punhal de ouro, numa velocidade surreal, em direção à Floresta do Gigante, embora não fosse sequer visível no horizonte àquela altura.
Superando a velocidade do som, Brisa literalmente cortou o céu, até, ainda no ar, remodelar-se na mesma fumaça amarelo-metálico e tomar uma nova forma: Lembrava uma criança, uma menina aos dez anos de idade, de cabelos longos e ondulados e face adorável. Era inteiramente dourada, emitindo uma tênue luminosidade de mesma cor, e media cerca de vinte e cinco centímetros da cabeça aos pés.l Asas semi-transparentes nas costas moviam-se tão rápidas que ficavam quase invisíveis.
Brisa Perfurante era uma mindinho, a terceira dos Quatro Signos da Guerra, as armas da Deusa de Várias Faces. Comumente servia como mensageira ou espiã graças à velocidade e tamanho, sendo a segunda mais evocada, atrás somente de Ventania.
Em um minuto ou dois, voava sobre as árvores da floresta. Manteve-se imóvel por todo o trajeto, confiando na pontaria certeira de sua senhora. Quando perto das copas, desacelerou, passando por galhos e folhas até encontrar-se, como previsto, pairando na frente de um rapaz vestindo uma couraça completamente amassada e inutilizada, encostado em uma árvore.
Sentia uma certa presença familiar emanando de seu corpo, mesmo que muito sutil, e teve certeza que aquele era o Guerreiro.
Curiosa, aproximou-se com certa cautela.
Kira abriu os olhos.
O que, dadas as circunstâncias, era impossível.
Tão incrédulo quanto zonzo, respirou fundo e observou, primeiro, o que estava a sua frente: Pelo menos três árvores partidas ao meio e um caminho devastado chegando até ele, talvez mais de cinquenta metros.
Já em destaque, via o que deveria ser um mindinho, planando à meio metro de seu nariz, sendo totalmente amarelo e luminoso.
— O que...? — Tentou, com a voz rouca.
— Não se esforce, Guerreiro. — Pediu-lhe. Percebeu que aparentava ser uma menina. — Deixe-me consertar sua armadura.
— O... — O ser de luz aproximou sua minúscula mão e tocou o metal. Os incontáveis amassados nas placas, que permaneceram unidas de alguma maneira, assim como as manoplas e perneiras, foram sumindo, voltando ao normal com uma naturalidade assustadora. Ficaram mais novas e lustrosas até do que estavam antes; o antigo talho deixado por Erik sumira. O rapaz ficou perplexo. — Você faria sucesso onde trabalho...
— Com certeza. — Sorria.
Kira franziu a testa.
— Como fez isso?
— Restauração. É um dom.
— Oh. E você... vive aqui?
— Não. — A pequenina afastou a palma e recuou alguns centímetros. Suas asas eram incrivelmente rápidas.
— Entendo... — Não soube como prosseguir o diálogo, ainda mais comunicando-se com um ser inédito para ele. Aos poucos, melhorava da tontura. — Obrigado. Não faço ideia de como não fiquei igualmente amassado. — Analisou outra vez as árvores em frangalhos. — Não sei mesmo...
— Posso te explicar o que houve. — A mindinho atraiu sua atenção.
— Pode?
— Mas não agora. Sinto combate perto. Você precisa ir.
Combate. Os cavaleiros. Os centauros. Pedralha.
Kira lembrou-se tão rápido que a floresta quase voltou a dar voltas.
— Merda. — Mexeu o corpo, receoso, mas não sentiu nenhuma dor como ossos quebrados ou sequer hematomas. Apenas escoriações lhe ardiam o rosto. Levantou e a mindinho o acompanhou. — Você... vem comigo, não vem?
— Sim, com certeza. Mas como é mesmo seu nome de gente?
— Kirart. Mas pode me chamar de Kira se quiser.
— Muito prazer. Me chamo Brisa.
— Brisa...?
A pequenina voou ao redor do rapaz rapidamente.
Logo Kira deu os primeiros passos pelo rastro de estragos que causara, ainda sem entender como sobrevivera. Confiaria as explicações àquela estranha mindinho brilhante, que talvez fosse sua única chance de entender alguma coisa. Contudo, dizia-se que, na maioria das vezes, os seres da raça eram boa companhia, então não se preocupou tanto.
Segundos depois de acertar Kira com um golpe digno de pena, Pedralha adentrou a massa de centauros, matando três instantaneamente. Os animanos logo o cercaram, organizando-se numa formação mais espaçosa, por onde, de cinco em cinco, atacavam à galope com saltos e golpes de lança, enquanto os demais realizavam curvas entre as árvores preparando as investidas seguintes.
As hastes de pontas metálicas velhas tiravam lascas do corpanzil rochoso, mas nada além do cansaço, à princípio, serviria para pará-lo. Movimentando braços e punhos fechados, Rasvart derrubava árvores, abrindo uma espécie de clareira, e acertava centauros quase sem vê-los, às vezes pisoteando em um e outro. Pareciam infinitos e incansàveis, pulando em cima de seu corpo, galopando sem parar, gritando, erguendo suas armas.
Talvez tivessem mais energia que o gigante no fim, o que, pouco a pouco, deixava-o mais preocupado.
Em um instante em especial, algum tempo após iniciada a batalha, viu, ao longe, vindo em sua direção, sozinho e gritando bravamente, um centauro enorme. Garanhão negro e homem musculoso ao mesmo tempo, mais de três metros de altura, boca escancarada num rugir apavorante, abrindo espaço entre os demais, galopando com força e velocidade. Trazia nas mãos uma alabarda e uma espada enorme.
Brank estava pronto para derrubar aquele amontoado de rochas.
Irado, saltou seis metros antes. O braço da espada já ia acima da cabeça pronto para o golpe, enquanto movia a alabarda preparando um movimento arqueado à frente do corpo. Talvez nunca tivesse atingido tal altura e distância num único pulo, mas ignorou.
Pedralha, em reposta, moveu a gigantesca mão, gerando uma lufada de ar.
Antes que a pedra o atingisse, Brank moveu ambas as armas para a esquerda do corpo, protegendo-se do impacto. Quando atingido, grunhiu com a força e foi arremessado para o lado com um impacto nunca antes sentido.
Conseguiu cair de pé.
Os companheiros, que apenas circundavam os dois combatentes para dar-lhes espaço, esbravejaram à favor de seu líder, que voltou a galopar, inclinando a parte humanoide para frente e posicionando as armas.
O senhor da floresta seguia-o movimento o rosto liso, seguindo-o com olhos invisíveis.
Brank correu cerca de meia volta, aproveitando para refletir um pouco sobre sua estratégia de ataque. Avaliou rapidamente o gigante, de seis metros de altura, mas apenas três acima da cabeça do animano. Em seguida, fitou suas armas.
Pela segunda vez ergueu a espada, porém alongando todo o braço para trás, até às costas. Mirou e, aplicando toda sua força, arremessou-a como quem atira uma adaga.
A arma girou no ar seis vezes até acertar a rocha no lugar da cabeça de Rasvart, pesada o suficiente para fazê-lo perder concentração e equilíbrio por breves segundos. Aproveitando-se, o centauro avançou em sua direção, segurando a haste da alabarda com duas mãos, erguendo-a acima da cabeça e acertando a lâmina de machado, com um golpe descendente, na junta entre a perna esquerda e a cintura. Ao fim do movimento, abaixou o torso de homem, passando apertado por entre as pernas do gigante, sentindo lascas de pedra caindo sobre as costas.
E pela primeira vez, talvez em um milênio ou dois, Pedralha sentiu um desconforto. A perna esquerda não respondia como antes, deixando-o mais surpreso do que preocupado.
O círculo de animanos, mais lentos, urrou em euforia e aprovação. Brank freou e, ofegante e suado, encarou mais uma vez seu adversário, que virava para vê-lo.
Os cristais nas costas brilharam, e o centauro decidiu que aquele era o próximo alvo. Não sabia se ainda tinha forças, mas precisava tentar. Seria ele quem derrotaria o senhor da floresta.
Ergueu o corpo equídeo, apoiando-se nas patas traseiras, ganhando mais um metro e meio de altura. Moveu as mãos sobre o extenso cabo de sua arma, segurando-o pela ponta sem lâminas, levou os braços para trás do corpo e grunhiu, antecipando o esforço.
Um clarão iluminou o dia, algo branco cortou o ar em rasante acima de sua cabeça por um segundo e as costas de Rasvart se estilhaçaram como vidro púrpura.
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O Bastardo da Rainha
FantasyKirart foi criado e educado pelo anão Bago Blacsmal, dono da Espeto Vermelho, a famosa forja do ducado de Carvalho Velho. Conviver com armas e ouvir histórias de guerreiros viajantes a vida inteira deixou Kira fascinado pelas campanhas militares à...