6. Habilidade Dupla

141 11 3
                                    

Kira não conseguiu dormir direito por causa de um estranho nervosismo. Pensou no dia seguinte, nos testes, nos outros rapazes que participariam, se seriam muitos ou não, habilidosos ou não. Pensou também em Bago e em como seria ignorado por ele.
O sol, ou Luz de Marraria, emergia preguiçosamente no horizonte e o garoto logo foi se arrumar, apressado pela ansiosidade. Tomou coragem e se banhou com águas congelantes. Trêmulo, vestiu uma camisa de mangas longas com cordões entrelaçados para apertar a gola e uma calça cortada pela metade na altura dos joelhos: as roupas de um típico aldeão, leves para facilitar a movimentação. Correu para debaixo dos grandes lençóis de lã e esperou um tempo.
Quando confortável, deixou seu quarto, não vendo ninguém.
Foi até os armários e despensas atrás de algo para comer. Mordeu somente um pão duro e comeu uma maçã do tamanho do próprio punho. Ficou atento no horizonte pelas janelas.
Esperou o céu se iluminar um pouco mais e saiu sem avisar.
Desamarrou Feroz, lhe deu punhados de feno e arrumou sua sela. Partiu rumo ao castelo à galope para aquecer o cavalo.
Chegando na fortificação, viu guardas de escudo e lança flanqueando a estrada retilínea que levava ao portão, aberto, por onde alguns jovens entravam, sobre montarias ou à pé.
O rapaz reduziu a velocidade, passou pela maioria e cruzou o portão, curioso para saber o que era tão protegido em seu interior.
Caminhos de paralelepípedos claros levavam a quase todas as construções do lugar. Era mais um pequeno feudo do que apenas o castelo propriamente dito, com armazéns e silos à parte, um arsenal, estábulos, oficina de escultores e tecelagem. Além de jardins floridos em campos onde antes deveriam ficar pequenas hortas.
O grande palácio do Duque tinha uma arquitetura fortificada, de paredes feitas com grandes tijolos de pedra clara, quase branca. Sua estrutura era quadrangular e ao todo tinha quatro andares repletos de janelas. Na entrada destacava-se uma porta dupla de madeira castanha e muito provavelmente nobre, com quase três metros de altura. Quatro torres, decorativas de telhados cônicos e azulados ficavam nas pontas.
Kira viu-se frente a frente ao palácio, boquiaberto. Desceu de Feroz lentamente, ainda fitando a construção. Tinha a noção do quão majestoso e caro era o lar do nobre regente, mas não pensou que fosse tão grande para um casal com um filho e filha. Mesmo contando com os vários servos, imaginou quantos quartos estavam vagos e fechados dentro do palácio.
Perto dele, próximos à entrada, aguardavam vários rapazes humanos e alguns Sisrrar e Frelen, todos desorientados.
Então, saiu pela grande porta do palácio um centauro, ser animano cujo corpo era uma união entre cavalo e homem. Vestia, acima da cintura, proteções metálicas nos ombros e tórax. O musculoso corpo humanoide tinha um tom de pele claro.


No rosto, de expressão séria, destacava-se uma barba bem aparada, marrom como os olhos sábios e os cabelos curtos e bem cortados. Aparentava estar perto dos quarenta anos, embora a jovialidade e o vigor natural da raça pudesse enganar um pouco. Abaixo da cintura projetava-se o corpo equídeo, que também possuía pelos amarronzados, porém mais escuros. Seus cascos tinham ferraduras brilhantes como prata, gritante contradição aos costumes da raça. Os pelos longos do rabo tinham tons loiros claríssimos.
Trotou até o grupo, onde todos o encaravam com olhos curiosos.
— Iniciaremos os testes nos campos de treino do Duque, onde ele espera por todos vocês. Apressem-se e sigam-me. Não se preocupem com seus cavalos, cavalariços ficaram responsáveis por eles. — Anunciou com voz grave, dando-lhes as costas e trotando por um caminho em curva que parecia contornar o palácio em seguida. Sem demora, os jovens andaram atrás dele, e quando os últimos entraram, os guardas retornaram e fecharam o portão.
Estes, na verdade, não estavam nem um pouco preocupados.
O que um bando de jovens do povo poderia fazer de ruim?


Atrás do palácio ficava um campo quadrado de terra batida cujo centro era marcado por uma linha de areia branca. Em uma espécie de palco, com mantos azuis e brancos sustentados por hastes de madeira formando uma espécie de teto, no espaço entre o campo e o palácio, estavam o Duque Enrique, a Duquesa e o filho do casal, um clérigo de vinte e cinco anos, bem acomodados em cadeiras almofadadas. Três duplas de guardas e o conhecido androete guardavam o perímetro.
O centauro, ligeiro, já aguardava todos no centro do campo de terra. Esperou todos os jovens para anunciar o próximo passo.
— Antes de tudo, cumprimento todos e agradeço por terem se apresentado. Vossa alteza, o Duque, também os agradece e espera bons resultados. — Com um gesto apontou para o nobre, que apenas sorriu. — Antes dos testes físicos, vou organizar todos em três grupos. Será importante para o futuro dos treinos, então sejam extremamente sinceros.  — De certa forma, os rapazes se endireitaram. Haviam "candidatos" de todos os tipos físicos ali, altos ou baixos, magros ou gordos. Não só humanos, estavam presentes também alguns Sisrrar e Frelen por ali. — Aqueles que sabem andar a cavalo vão para lá. Já aqueles que sabem usar espada ou lança, para cá. — Apontou as direções com gestos. — Os que fazem as duas coisas ficam onde estão.
Rapidamente todos se organizaram, alguns para um lado e outros para mais perto do animano. Kira, como outros vinte, mal se mexeu. Quatro rapazes sinceros deram passos para trás, sem saber o que seria feito com eles. — Assim está ótimo. Vocês que usam armas virão comigo. Os que sabem cavalgar vão esperar o mestre de armas, que está um pouco atrasado. Os que conhecem as duas áreas conversarão com o Duque junto com vocês quatro que dizem não saberem fazer nada. Aos que ficam, até breve. — E então, com um outro gesto, chamou seus acompanhantes. Kira trocou olhares com os mais próximos, e logo caminharam na direção da tenda onde a família nobre esperava. O homem já estava de pé com um sorriso gentil nos lábios.
— Espero que não tenham mentido para Bak, rapazes. Ou então não acharão meus treinos nada divertidos. — Disse, humorado. Treinar com o Duque? O próprio Henrique Brags? Kira sentiu-se abençoado. — Mas, pelo que vejo, parecem rapazes sinceros. — Continuou. Olhou para o filho. — Acertei, Endrik?
— Sim, não sinto mentira entre eles. — Respondeu. Como bom clérigo, conseguia sentir quando um ser cometia um pecado ou escondia algum feito maligno.
— Pois muito bem, já ganharam um ponto comigo. — Enrique voltou a falar. — Vamos para o arsenal agora, então se não se importam, gostaria de lhes contar algo no caminho.


O Duque deixou a tenda acompanhado de três guardas e seu androete. Os jovens afastaram-se da máquina assim que notaram sua aproximação. Andavam ao lado do palácio rumo ao armazém de armas do castelo.
— Vocês sabem por que a Rainha das Lanças ataca Dourarado há vinte ciclos? — O nobre perguntou de repente, à frente de todos. Enrique tinha traços joviais, estava em ótima forma física, porém sua idade já ultrapassava a casa dos quarenta. Era loiro, cabelos perfeitamente penteados, e seus olhos tinham um tom esverdeado claro e raríssimo. Era alto, forte, mas sem exageros nos músculos. Vestia roupas azuis e brancas mais práticas, porém ainda luxuosas.
— Porque precisa de ouro? — Tentou um garoto mais atrás.
— Todos precisam, meu jovem. Mas não é este o caso do nosso reino, que, afinal, mantém grandes batalhas e exércitos há tanto tempo. O motivo de tamanha insistência é outro.
— A rainha deseja unir os reinos? — A voz veio da frente.
— Exatamente. Anexar um reino tão rico e vasto, apoderar-se dele, seria ótimo. Porém há algo em Dourarado que a Rainha deseja imensamente e que é protegido à todo custo pelo Rei Aurun. Unir aquelas terras à Lançarta, ter seu controle, é o método para pegá-lo.
— E o que é? — Quase uma dezena perguntou ao mesmo tempo. Em dezessete anos, Kira não lembrava de ter ouvido algo parecido sobre a guerra, então manteve-se em silêncio para ouvir tudo com atenção para não esquecer depois.
— Somente os guerreiros da Legião dos Bravos sabem e podem saber. Como fui um deles, tenho tal conhecimento, mas se contar para vocês, uma maldição corroerá meu corpo de dentro para fora e eu morrerei antes que vocês pisquem duas vezes. — Disse tudo com um estranho sorriso. — E eu não quero que isso aconteça, seria bem desagradável. — Os jovens atrás dele protestaram desanimados. Retomou em seguida: — Mas meus planos para vocês são outros, mais... pessoais. Não há dúvidas que Dourarado é um reino riquíssimo e extenso. Desejo garantir posses além da fronteira para quando a guerra terminar, começar um outro Ducado e trazer riquezas para Carvalho Velho. Planejo fazer expansões, torná-lo o maior ducado dentre todos do sul. É o plano que tenho em mente, paralelo aos da rainha, mas ainda dando suporte à ela. E vocês me ajudarão a colocar tudo em prática.
— O senhor ergueu esta cidade com tesouros de lá, certo?
— Tive ajuda do rei, mas, sim. Muitos anos atrás, quando era bem mais jovem, derrotei um mago roxo poderoso e fiquei com seu ouro. Retornei o mais rápido que pude e me instalei nestas terras. Ainda era o reinado do Rei Morto, que me concedeu o título pelo ato bravo que até auxiliou em campanhas iniciais. Mas isso não convém agora. — Enfim chegaram ao arsenal, construído totalmente com madeira. — Bom, acho que já disse o que queria, vamos nos concentrar agora. Procurem espadas cegas para os treinos nos baús. Devem testar o fio afundando o polegar na lâmina. Se não cortar, está ótimo.
Os rapazes obedeceram sem questionar, entrando no armazém e procurando as armas abrindo grandes baús.
Viram inúmeros tipos de armamentos ali: hastes compridas com pontas metálicas, lâminas medianas ou pequenas, machados duplos ou de lâmina única, grandes martelos de batalha, clavas espinhentas e bastões com ornamentos. O que era mais caro ficava em destaque nas paredes e o mais comum e numeroso dentro dos baús com arestas de metal. Poucos minutos e todos estavam armados com lâminas velhas e cegas, sem brilho e dentadas. O Duque então os levou de volta para o campo de treino, cruzando com o tal mestre de armas e os jovens que o seguiam no caminho.
Ao chegar em seu destino, o nobre virou-se para seus alunos.
— Formem uma fileira na minha frente e fiquem no que acham que seja uma posição ofensiva. — Ordenou. Kira e os demais obedeceram, alguns mais desajeitados que outros. — É, não está tão ruim. — Olhou para os quatro que expressaram não ter habilidades, ainda no aguardo de novas ordens. — Vocês que foram sinceros também aprenderão a lutar, vou ajudar-lhes especialmente depois. Podem assistir mais afastados se quiserem. — O quarteto assentiu e se afastou. Enrique voltou a atenção para o grupo principal. — Devo lhes dizer o motivo de Bak ter dividido vocês dos demais e tê-los deixado comigo. Não é apenas para equilibrar as habilidades de todos, mas para colocar vocês alguns passos a frente dos outros no que se refere à suas habilidades. Em determinados momentos inimigos mais fortes aparecerão e será necessário guerreiros mais fortes, acima do comum para derrotá-los. Vocês liderarão o grupo durante a longa viagem auxiliando Endrik e Bak, e ganharão cavalos e títulos temporários de cavaleiros. — Todos se entreolharam. — Porém, antes preciso saber quais são merecedores de tal regalia, já que não posso jogar isso nas mãos de vocês sem mais nem menos, além de não ter tantos cavalos disponíveis. Então, — Anunciou, enfim: — Ergam suas espadas e façam tudo que eu mandar!

O Bastardo da RainhaOnde histórias criam vida. Descubra agora