Anoitecera.
Durante todo o resto do dia, nada além do combate com a sisnora aconteceu.
O acampamento foi montado ao lado esquerdo da estrada, pilhas de lenha foram incendiadas e os jovens guerreiros se acomodaram aguardando suas porções de comida. Naquele horário, as refeições eram um pouco mais calóricas do que as ingeridas durante pausas breves no trajeto.
Kira foi até Blemvit e comeu junto à ele. Conversaram sobre assuntos sem muita importância, riram uma ou duas vezes. Mais tarde, quando todos se preparavam para dormir, o cavaleiro ofereceu-se para participar da vigília, mais por curiosidade.
Era o único à cavalo entre os dez rapazes reunidos, então deu para si mesmo a responsabilidade de rondar o acampamento, fazendo Feroz dar inúmeras voltas. Logo tudo ficou silencioso, de modo que o menor dos ruídos, como as folhagens ou o fraco crepitar do fogo, ou o estalar sutil da lenha, ecoasse por todo o lugar.
Ao fim da sua décima oitava volta, ouviu algo diferente, ficando totalmente alerta. Feroz ergueu as orelhas e parou o trote.
Kira vasculhou o acampamento com olhos até encontrar uma figura familiar deixando uma das barracas. Dadas as roupas longas e brancas, só poderia ser Ellia.
Curioso, apenas observou, e acabou surpreendendo-se: correndo, a moça foi até sua égua, montou e disparou em direção à estrada.
Um tanto receoso e sem pensar muito bem, decidiu ir atrás dela.
Menos de um minuto depois, Ellia ouviu sons de outros cascos batendo nas pedras da estrada silenciosa, e então notou que estava sendo seguida. Olhou por cima do ombro para certificar-se, e mesmo ante a escuridão conseguiu discernir um cavaleiro e decidiu atacar.
Ninguém atrapalharia seu plano.
Reuniu energia na mão direita, as tatuagens brilharam, e três anéis brancos rodearam o antebraço, gerando luz. Largou as rédeas por um instante, apontou o braço para trás, mirou precariamente e disparou.
A esfera luminosa de energia passou por Kira como um lampejo, que, se não tivesse abaixado, teria perdido o ombro.
— Ei! — Gritou em protesto.
—Deixe-me em paz! — Retrucou a maga, preparando outro projétil.
O cavaleiro optou por sacar o escudo, preso ao lado direito de Feroz. Talvez não o protegesse do próximo disparo, mas seria melhor do que recebê-lo de guarda aberta. Com uma mão, segurava a rédea, e com a outra, ergueu a proteção.
Ellia atirou, mas dessa vez errou por muito, acertando uma árvore, explodindo um buraco em seu tronco e fazendo-a despencar num estrondo momentâneo.
O cavaleiro se aproximava. A moça tentou uma terceira vez.
— Senhorita, por favor, pare o cavalo!
— Pare você!
— Aonde está indo?
A terceira esfera foi disparada, maior que as anteriores.
Ela cruzou a distância entre os dois cavalos e acertou em cheio o escudo de Kira. O impacto machucou seu braço e o arremessou para trás, fazendo-o cair de Feroz. O cavalo relinchou e reduziu no mesmo instante.
Ao ver o resultado de seu ataque, Ellia pensou um pouco no que fizera. Sentiu-se um tanto culpada, odiou-se por isso, mas decidiu dar meia-volta.
Parou a égua branca perto do rapaz, que sentava com dificuldade após a queda destranbelhada.
Largara o escudo, agradecendo a deusa mil vezes por não ter fraturado o braço. O círculo de madeira e metal, porém, ficou inutilizável.
— Eu disse para me deixar em paz. — Lembrou a maga.
— Vou obedecer da próxima vez. — Com pesar, ele se levantou. O corpo estava dolorido, bem como o braço, mas nada além disso. — Agora vamos voltar.
— O quê?
— Você vai voltar comigo antes que senhor Braggs sinta sua falta.
— Senhor Braggs? — Estranhou, rindo. — Você é educado, mas não precisa chamá-lo assim.
— Ele ainda é meu superior.
— Você é o líder dos cavaleiros, pode chamá-lo apenas de Endrik.
— Não, não, senhorita. — Se apressou em dizer. — Não sou líder de nada.
— Muito menos precisa me chamar assim.
— Desculpe-me.
— Mas creio que seja o único realmente capaz de ser. Já matou ladrões antes e agora uma sisnora selvagem. Tem ao menos a coragem necessária.
— Como... sabe dos ladrões?
— Foi o assunto de um jantar inteiro certa vez. Bak encheu a boca para falar de você, Kirart Blacsmal.
Citou o nome exagerando na formalidade.
— Ah... — O jovem até corou. — De qualquer forma, não posso deixá-la ir.
— Ah, é? Como acha que vai me impedir?
— Sou o líder dos cavaleiros, e você, apenas uma maga.
Kira ergueu uma sobrancelha e esboçou um sorriso em seguida, aceitando a ideia rapidamente. Ellia o observou de olhos estreitos, mas sorriu.
— Quer levar outro? — Moveu o braço. O guerreiro riu.
— Então, o que pretendia fazer? Procurar ar puro que não era. — Enquanto falava, subia em Feroz.
— Ia pedir alguns arqueiros para meu pai.
— Voltava para Carvalho Velho?
— Sim.
— À essa hora? Eles não são tão importantes para arriscar-se neste nível.
— Para mim, serão, e muito.
— Endrik deixou claro que não voltaria, e eu entendo ele.
— Olha só!
— O que foi?
— Não o chamou de senhor.
— Ah.
— Bom, ele é seu líder, mas ainda é só meu irmão. Nunca lhe devi obediência, e não será agora que vou dever.
— Mas...
— Você não concorda comigo? — O encarou. Kira pensou um pouco.
— Confesso, concordo. Realmente seriam úteis.
— E por que não disse nada durante a reunião?
— Não queria me comprometer. Creio que ninguém queria.
— Olha, eu ainda não desisti. Você pode voltar e me dedurar se quiser, mas, voltar, eu não vou. — Dado o ultimato, virou a égua e a fez trotar. O cavaleiro pensou por alguns segundos. A seguiu. — Mas o que...?
— Já que estou aqui, não posso deixá-la sozinha. Se aparecer algum ser perigoso, suas bolinhas de luz não serão suficientes.
— Bolinhas?! — Pareceu mesmo ofendida. — Esqueceu de como ficou seu escudo?
— Tudo bem, mas elas te cansam mais do que usar um martelo de batalha. Pode ser um problema.
— É... — Cedeu.
— Olha só.
— O que foi?
— Você concordo.
Ellia sorriu e fechou os olhos.
— Vai ser uma longa noite...
A estrada imersa em escuridão chegava a dar medo. O silêncio era quase absoluto, as árvores quietas mal farfalhavam. Ellia e Kira não trocaram um palavra até chegarem ao ducado, o que, mesmo fazendo os cavalos correrem durante maior parte do tempo, demorou mais horas do que previram.
A entrada em arco no muro era guardada por um quarteto de lanceiros no chão e arqueiros no topo.
Quando viram o casal, os guerreiros apontaram suas hastes na direção da dupla à cavalo e colocaram os escudos redondos à frente, formando uma barreira.
— Quem são vocês? — Perguntou algum arqueiro. Seis deles já miravam entre as bordas dentadas do muro alto, iluminado por piras.
— Saiam da frente! — Ellia retrucou, evocando uma esfera de energia mágica e atirando no chão, apenas para mostrar quem era. Reconhecendo-a, os lanceiros afastaram-se, deixando de importar-se também com Kira.
Os jovens fizeram os cavalos trotarem dois minutos depois, já nas ruas de Carvalho Velho.
— Vai comigo até o castelo? — Ellia perguntou.
— Ora, claro.
— Quer dizer, não sei, você tem família, pensei que quisesse revê-los.
— Não passei mais de um dia fora, eu estou bem.
— Sério mesmo?
O rapaz pensou. Um beijo de Liz e um abraço de Bago lhe fariam um bem enorme. Mas se os visse, poderia até desistir da missão e querer ficar.
— Sim, melhor não arriscar.
— Arriscar o quê?
— É coisa minha. Sabe a direção que devemos ir?
— Você sabe?
— Eu sei onde ficam todas as tavernas daqui, e uma fica perto do castelo. Então, sim.
— Conhece a localização de todas?
— Sim. Velha Careca, por exemplo, fica duas ruas à nossa esquerda. — Ele inalou o ar. — Sinto até o cheiro do Suor...
— Suor?
— Suor de Gigante, nunca bebeu? — Pareceu realmente surpreso.
A maga fez uma careta e emitiu um gemido enojado.
— Por que eu beberia algo com esse nome?
— É apenas um nome, alteza. — Brincou com o modo de tratamento. — O primeiro gole sempre é o mais azedo, mas do segundo em diante, não dá mais para parar.
— Ah, Deusa... Enfim, onde fica essa tal taverna próxima ao castelo?
— Vejamos... — Pensou. Tendo como base a localização do bar Velha Careca, seria fácil achar a Cordeiro Saltitante. — Siga-me.
E tomou a frente. Sem muitas escolhas, Ellia o fez.
Ao olhar para o rapaz de perto, sentiu que ele era diferente dos demais. Muito diferente dos jovens ricos de Montania, em sua maioria esmagadora convencidos e esnobes.
Ele era "de verdade", tivera, de certa forma, uma vida de responsabilidades, passou por diversas situações, sabia de muitas coisas que, com certeza, ela não fazia ideia. Tão jovem, mas com a experiência vivida que ela só conhecia teoricamente.
Logo corou ao perceber quanto pensava nele. Afastou os pensamentos e tentou esconder o rosto com o capuz do manto.
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O Bastardo da Rainha
FantasyKirart foi criado e educado pelo anão Bago Blacsmal, dono da Espeto Vermelho, a famosa forja do ducado de Carvalho Velho. Conviver com armas e ouvir histórias de guerreiros viajantes a vida inteira deixou Kira fascinado pelas campanhas militares à...