14. A Floresta do Gigante

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Cruzar metade da cidadela não demorou nem uma hora. Pessoas nas ruas ficavam curiosas ao ver tamanho grupo armado. Crianças eufóricas os seguiam rindo e tentando chamar a atenção dos rapazes. Um menino em especial seguiu Kira de perto, encarando-o com olhos brilhantes. O rapaz sorriu, identificando-se, pois anos antes tinha o mesmo semblante. Bagunçou os cabelos da criança e voltou os olhos para o caminho.
Chegaram na saída do Norte, um arco largo de quase quatro metros no muro que rodeava o ducado, sem portão. Atravessaram a passagem, já pondo pés e cascos na estrada quilométrica que levava até a capital e as grandes cidades do reino.
Mantiveram o ritmo até chegarem na Floresta do Gigante.
O reino Lançarta era dividido em duas partes: As enormes cidades livres do norte, incluindo a capital, e os ducados, feudos e vilas do sul. Entre elas, situava-se a floresta, o maior lar de seres silvestres das mais variadas raças animanas fora do próprio Reino dos Animanos. Seu habitante mais conhecido, também considerado seu guardião, era o gigante Pedralha, apelido dado por aldeões. Contava-se que o ser media seis metros de altura, tinha três mil ciclos de idade, rocha no lugar da pele, e um minério misterioso em suas costas. Encontrá-lo durante a travessia tornara-se-ia o maior medo dos rapazes, porém eram poucas as provas de que ele realmente existia.
O que não era o único risco preocupante.
A construção da estrada real custou a derrubada de incontáveis árvores, o que enraiveceu os seres silvestres profundamente. Fadas do lago, sátiros, frelen, sisrrar, sisnora, minotauros e centauros selvagens deixaram crescer em seus âmagos rancor e ódio pelos humanos. Vez ou outra ouvia-se relatos de ataques à mercadores e viajantes que cruzavam a estrada.
Quando já entre árvores, Kira não conseguia pensar em nada além do gigante de pedra. Se estava ali por perto ou não, ativo ou não. Bem como Endrik, alguns metros atrás dos cavaleiros e perto das carroças.
O filho do Duque tinha vinte e cinco anos de idade, mas era sábio e disciplinado, quase tão responsável quanto o pai, e por tal motivo foi nomeado o líder daquela missão. Ainda por cima, teria Bak consigo, um experiente guerreiro e bom conselheiro. Os cabelos loiros, a pele clara e os olhos azulados provavam a paternidade, bem como a estatura alta e imponente.
Como todo clérigo, Endrik se ofereceu ao templo da cidadela como aprendiz, em parte sob influência do pai, aos doze anos de idade. Aos dezoito, tendo terminado suas lições e provações, foi nomeado Profeta de Marraria. Quando, pela primeira vez, ouviu a voz da Deusa de Várias Faces ecoar em sua mente, séria e suave, acolhedora e reconfortante, soube que tudo valera a pena. No tempo que se seguiu firmou um laço mais íntimo com a divindade suprema e desenvolveu poderes mais fortes que o normal.
Havia muito tempo que nada o preocupava de verdade, à exceção da querida irmã mais nova, que seguira pelo caminho "oposto": a magia do corpo, e não a divina.
Ellia passara a adolescência no segunda ala do gigantesco feudo Montania, na Academia dos Magos Cinzas, onde aprendera a evocar e manipular sua energia interior, externando-a e transformando-a em matéria física. Tornou-se uma boa maga, perita na área das magias de disparo. Mas nunca atacou nada além de espantalhos e nunca passara tanto tempo fora de um castelo. Estava ao mesmo tempo maravilhada e assustada com o mundo à volta.
Quando crianças, ela e o irmão eram comumente confundidos como gêmeos, tamanha era a semelhança entre os dois. Mas após despertar a magia de seu corpo, Ellia amadureceu mais rápido e seu cabelo dourado esclarecia mais à cada dia. Fora os olhos, escuros como fumaça, e não mais anis.
Os dois iam lado a lado, porém em silêncio absoluto. A jovem seguia séria e o irmão a olhava vez ou outra, caçando algum assunto em sua mente para conversar.
Não se falavam tanto quanto antes.
Mais atrás, no meio do corpo de guerreiros, três frelen jovens sentiram um cheiro esquisito e pararam de andar. Olharam para a floresta do lado esquerdo, ao mesmo tempo que olhares caíram sobre eles. E. de repente. seus pelos ficarsm eriçados como espinhos.
— Cobra! — Gritou um. Os outros dois também berraram, puxando suas espadas. — Cobra!
Rapazes ao redor se surpreenderam, outros apenas riram. Endrik e Ellia olharam para trás assim como os cavaleiros e Bak.
Em seguida veio o silêncio. O grupo voltou a andar.
E então, das árvores na esquerda, saltou uma sisnora de pele e escamas esverdeadas, de boca escancarada e garras afiadas, cujas presas inoculavam veneno corrosivo, e da garganta escapava um grito agudo e esganiçado.


Os jovens guerreiros gritaram de susto e horror. A sisnora não perdeu tempo, avançando no primeiro que viu, um humano alto. Agarrou-o com os braços humanóides, cravando as garras profundamente em suas placas de ferraço, já enrolando-se sobre ele com a enorme cauda de cobra abaixo da cintura. Intimidados, os garotos mais próximos prepararam suas armas, mas não avançaram. Bak retornou à galope, gritando ordens.
Ellia observava tudo, e em sua mão algo branco e luminoso começava a se concentrar. No antebraço, revelaram-se e iluminaram-se algo como tatuagens, linhas em sua pele, provavelmente seguindo até o ombro.
Kira, na frente, virou Feroz na direção da sisnora e se preparou para ir atrás de Bak.
O centauro puxou sua grande espada, mas a filha do Duque o Interrompeu com um grito de alerta.
— Bak, salte para a direita! — Em sua palma surgira uma esfera luminosa branca, e em torno do antebraço, à partir das inscrições na pele, três anéis largos de mesma energia. Fazia mira, na direção dá atacante.
O centauro sequer olhou para trás, mas algo em seu interior o mandou obedecer. Suas grandes patas saltaram para a direção desejada e a moça disparou: os três anéis se chocaram com força e rapidez, do último até o mais próximo do pulso. A energia aderiu a esfera na mão e a puxou consigo, transformando tudo em uma única esfera alva e disparando-a contra a sisnora numa velocidade incrível.
As tatuagens deixaram de emitir luz.
O ser foi atingido com precisão na gigante cauda e seu corpo inteiro sofreu espasmos de dor, ao passo que um clarão de meio segundo cegou os mais próximos brevemente. Acabou soltando o guerreiro, que, em pânico, se arrastou para a liberdade.
O ser se virou para as árvores e esgueirou-se rapidamente, sumindo. Era audível somente o choramingo do rapaz, pouco ferido, mas abalado mentalmente.
— Cavaleiros! — Berrou Bak. Kira olhou diretamente para ele, que já erguia sua espada pesada.
— Não, Bak! — Interrompeu Endrik. — Devemos continuar.
— Senhor, aquela coisa pode voltar!
— Nós que estamos em seu território. — E abaixou um pouco o tom de voz. — Deixe que vá. Temos que continuar.
O centauro pensou e suspirou. Guardou a espada.
— Palavras dignas de um clérigo. — Não dava para reconhecer o tom que falara, se concordara ou não. Parecia um pouco debochado. — Vocês ouviram as ordens, rapazes. Vamos continuar.
Os guerreiros se entreolharam. Um cavaleiro perto de Kira largou o punho da espada longa, outro perto dele guardou a espada.
— Vou acalmar o rapaz. — Disse o clérigo à irmã. — Aliás, foi um bom disparo.
— É, obrigada. — Virou sua égua para a direção certa. Endrik cavalgou até o rapaz e passou por Bak, trotando de volta.
— Ótimo tiro, menina! — Parabenizou o animano quando ao lado dela.
— Obrigada, Bak.
Eles apertaram as mãos, a maga até arriscou um sorriso.
Seu irmão se mordeu de inveja por dentro.

O Bastardo da RainhaOnde histórias criam vida. Descubra agora