Reuniram-se todos os quarenta e dois rapazes no campo de treino atrás do palácio. Apenas o Duque esperava-os, com roupas leves de tons vermelhos e um cinto carregando duas bainhas com espadas.
Ele assentiu para si ao ver todos e esperou que se organizassem.
— Bom saber que quiseram voltar. — Disse. Pouco à pouco, todos se entreolharam. Alguns não cogitaram a hipótese de simplesmente não aparecer para o treino, outros nem não sabiam que tinham essa opção. — Bom seria se continuassem assim, já que o treinamento começará de verdade e faltas não serão toleradas. Iniciaremos logo, sim? Vão ao meu arsenal e tragam as espadas de treino. — Os rapazes deram meia volta. Bak trotou até o Duque e lhe disse algo. O homem ergueu as sobrancelhas sutilmente. Voltou a atenção ao grupo mais uma vez, que já se afastava. — Onde está o filho de Bago? Apresente-se.
Como antes, a maioria olhou para Kira, que por sua vez, sentiu o estômago congelar por dentro. Aproximou-se com passos hesitantes enquanto os demais deixavam-no para trás.
— Sim, senhor? — Respondeu, tentando parecer firme.
— O que eu deveria dizer sobre as mortes que causou esta madrugada?
— Ahn...
— Você e seu pai mataram cinco ladrões a sangue frio. Eu deveria agradecê-los ou puni-los?
— Bom... acho que deve agradecer. — Para ele parecia uma resposta lógica. — Eles causaram problemas, virariam um mal crescente se não fossem contidos logo. Senhor.
— Foi uma boa resposta. — Bak deixou escapar. Enrique balançou a cabeça como um pêndulo, incerto.
— Bem, de certa forma, é bom saber que você tem coragem para realizar tal ação sem hesitar e que tenho alguém assim comigo. O que está feito, está feito.
— E, aliás, realiza muito bem. Vi os cortes, senhor, profundos e fatais. Temos um bom guerreiro aqui.
— Obrigado, senhor.
— Pode parar de bajular o garoto? — O nobre virou-se para o ser alto, tendo que erguer os olhos. Ele apenas deu de ombros. Voltou-se para Kira, um tanto confuso. — Obrigado por realizar tal ato, tenho certeza de que evitou muitos problemas. Tem meus sinceros agradecimentos... Desculpe, seu nome?
— Apenas Kirart, senhor. Mas entre íntimos é Kira.
— Obrigado, Kirart. Agora vá se armar com os outros.
— Sim, senhor. — O rapaz assentiu e curvou-se antes de ir.
Bak aproximou-se mais do Duque.
— Apenas Kirart, senhor? Não deveria trazer o "Blacsmal" da família?
— Simples, ele não é filho de Bago. E provavelmente não tem ideia de qual seja o próprio sobrenome.
— Como assim, senhor?
— Conheço aquele anão há vários ciclos, foi ele quem forjou minha primeira espada. Por isso, conheço parte da vida desse rapaz, apenas me fugiu seu nome por um instante. — Flagrou a si próprio seguindo Kira com o olhar. Voltou a atenção para Bak. — A mãe dele fugiu com outro homem. Pouco tempo depois, ele perdeu o pai para a Legião na guerra. Era um bom homem, grande amigo de Bago. Sem escolhas, o anão, já cuidando sozinho da filha pequena, adotou o pequenino.
— Realmente não fazia ideia, senhor.
— Você está surpreso, mas ficaria muitas vezes mais se soubesse quem foi o homem que levou a mãe dele.
— Quem? — O centauro aproximou a orelha alongada para ouvir melhor. Enrique deu um sorriso.
— Só posso dizer que ele era nobre e morreu há muito anos. Assassinado pela própria mulher.
Bak pensou um pouco e seus olhos arregalaram-se quando associou um ocorrido histórico no passado à tudo que foi dito. Parecia impossível, improvável, mas mesmo assim...
— Não me diga que era...!
— Vá esperar os alunos, garanhão, teremos um dia cheio hoje! — Cortou o nobre ao saber que o amigo descobrira a resposta. O centauro apenas sorriu, tendo certeza. Esticou as costas e foi até o centro do campo de terra.
Não acreditava no que tinha descoberto, e ao longo dos dias que viriam, passaria a olhar o jovem Kirart com outros olhos.
Erik não dormiu nada naquela noite, tivera pesadelos horrendos com os assassinatos de seus companheiros. Seus subordinados, realmente, mas eram seus parceiros jà fazia algum tempo, e ele os conhecia bem.
De manhã, o acampamento estava silencioso como nunca estivera, e há um dia atrás era movido à risadas e conversas de baixo nível.
O líder do bando via-se sozinho pela primeira vez. Sentia-se tão triste quanto furioso e só conseguia pensar nos responsáveis pelo massacre e em Raindar, que disparou em fuga sem ao menos olhar para trás. Apertou o punho da sua adaga de caça roubada e fechou os olhos.
Inesperadamente, sentiu uma presença veloz se aproximando.
Concentrou-se um pouco e entendeu que era um Frelen pequeno. Poderia ser um simples morador da grande floresta, mas na direção que vinha, ficou claro para Erik que só poderia ser o covarde fujão.
O meio-guepardo suspirou e manteve a expressão neutra. Como esperava, Raindar chegou ao acampamento, exaurido.
— Sen... hor... — Tentou dizer, entre uma baforada e outra.
— Você sobreviveu.
— S-Sim. Sinto muito... pela fatalidade. Foi terrível.
— Não me importa o que sente. — O líder levantou. Preparou a mão na adaga discretamente. — Você não deveria ter voltado...
— Erik? — Chamou pelo nome, sem entender.
— Deixarei que fuja outra vez, seu merdinha. Mas, se quiser viver, terá que ser mais rápido que eu. — Com olhar sério e frio, encarou o outro felino e preparou a adaga, com a lâmina apontando para baixo.
Os olhos escuros de Raindar arregalaram-se. Até balbuciou algo, mas decidiu correr. Desajeitado, deu as primeiras passadas ligeiras e pousou as patas dianteiras no chão para acelerar. Mas estava cansado, não teria um bom resultado. Erik, porém, escancarou os dentes, rugiu e prendeu a faca entre as fileiras ósseas pontudas antes de disparar como uma bala de Cospe-Ferro.
Os dois Frelen desviaram de árvores, saltaram sobre pedras, esquivaram troncos caídos e evitaram raízes altas. Raindar não olhava sequer para os lados, com o pânico enchendo seu peito.
De repente, surgiu à beira de um pequeno lago, onde duas fadas aquáticas banhavam-se. Na pressa, não viu suas características com clareza. Elas gritaram de espanto e a mais alta, ao recuperar-se primeiro, moveu a mão, erguendo uma coluna d'água, controlando-a para cair sobre o felino, que, por sua vez, dava a volta pela margem. Mais atrás, vinha Erik, que decidiu continuar a perseguição pelo outro lado. A segunda fada, aparentemente mais jovem, o viu, mas nada fez além de avisar a primeira.
A coluna transparente desabou sobre o solo, encharcando uma boa área. Raindar escapou por pouco do corpo de água, sentindo uma chuva de respingos nos pelos. Urrou de agonia, tendo aversão mortal ao líquido como qualquer Frelen, mas manteve as passadas rápidas. A fada, então, virou-se para Erik, que, porém, já ia longe. Apenas tomou a amiga menor num abraço e suspirou.
Deixando as águas para trás, o frelen guepardo aproximava-se de sua vítima com facilidade, mas já estava cansando. Era rápido, mas tinha pouco vigor para manter a velocidade constante. Decidiu terminar logo com a perseguição.
Deu a última arrancada, queimando todas as reservas de energia que tinha.
Raindar gritou de susto.
Com um salto final, o líder do bando de finados ladrões caiu nas costas do felino menor. De adaga já em punho, perfurou a lateral de sua cabeça de modo que não morresse instantaneamente. Os dois rolaram algumas vezes. A ponta da lâmina saiu pelo olho escuro. Num segundo golpe mais fundo, o Frelen foi girando e retorcendo a arma, misturando cérebro e sangue como sopa.
A vítima berrou de dor e agonia por três segundos até silenciar-se por completo.
Erik se ergueu. Exausto, sujo, mas satisfeito. Não odiava nada mais que alguém covarde ou traidor. E Raindar, tendo as duas qualidades, merecera o fim que tivera.
Limpou a adaga e a guardou na bainha. Sem pressa, se virou para a direção que viera. Pensou em ir desculpar-se com as fadas.
Nos dias seguintes, apenas aguardou pacientemente o fim dos treinos no castelo da cidadela para acabar com um dos responsáveis pela morte de seus companheiros.
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O Bastardo da Rainha
FantasíaKirart foi criado e educado pelo anão Bago Blacsmal, dono da Espeto Vermelho, a famosa forja do ducado de Carvalho Velho. Conviver com armas e ouvir histórias de guerreiros viajantes a vida inteira deixou Kira fascinado pelas campanhas militares à...