26. Despertar

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Pouco depois de Marraria partir, Rasvart emitiu uma espécie de bocejo, um último suspiro antes de remontar-se.
As pedras ergueram-se e rodopiaram no ar, encaixando-se e unindo-se até toda a estrutura estar de pé. Uma figura cinzenta e humanoide, com tronco, braços, pernas, mãos com dedos e pés, e "cabeça". Ao todo mediria cinco metros de altura, mas a curvatura nas costas o deixava com apenas quatro.
Rasvart era, em essência, um Semideus, uma divindade menor com poderes reduzidos, escolhido por Florvalia, a Face da Vida. Três mil anos antes, era um reles gigante medroso, que, ao nutrir-se dos poderes divinos oferecidos, fora transformado em um Golem Rochoso; ganhou força e coragem, o dom da imortalidade e um corpo muito maior e resistente. Em troca, lhe foi dada a tarefa de guardar aquele imenso habitat, único com tamanhas dimensões além do Reino Animano.
O gigante deu o primeiro passo e um estrondo abafado reverberou por todo o lugar. Em seguida, iniciou uma caminhada preguiçosa e barulhenta por sua floresta rumo à estrada real, apenas esperando o encontro com os viajantes invasores.
O que, dada a grande distância e a lentidão, demoraria um pouco.


— Eu não acredito... Não pode estar acontecendo... — Murmurou para si um centauro, paralisado pelo que via.
O temido senhor da floresta estava ali, à sua frente, de pé, distante pouco mais de seis metros, caminhando calmamente e fazendo ecoar um trovão à cada passada. — É o fim.
— Temos que avisar Brank. — Cortou outro animano, no mesmo tom preocupado, recuperando-se do transe causado pelo medo mais rápido que os outros três companheiros ao lado.
Por sorte, estavam próximos à um amontoado de arbustos altos junto à árvores quando escutaram os barulhos altíssimos e ritmados, onde conseguiram, mesmo que no último segundo, esconder-se do gigante e observar seus movimentos.
— Por que ele acordou?! — Questionou um terceiro.
— Isso não importa agora, temos que voltar para o vilarejo antes que sejamos percebidos! Sigam-me!
Este, então, deu as costas para Pedralha, todavia sonolento demais para notar algo diferente, e galopou. Ouviu os outros seguindo-o, e só então respirou com mais calma.
Tinha o corpo de um garanhão marrom, sendo, onde se prolongaria o pescoço do animal, um "homem" forte, de cabelos pretos, ironicamente, presos num rabo de cavalo. Barba por fazer e rosto sério, franzido pelo súbito pavor preso na garganta.
Sua mente estava tão acelerada quanto o movimento de suas patas. Ao redor do cabo da lança que portava, seus dedos ficaram brancos de apertar com tanta força a haste de madeira.
Tentava suprimir os sentimentos ruins da melhor forma possível, já que, como responsável por aqueles jovens, não podia demonstrar insegurança ou medo.
Mas nunca conseguiu ser frio como o irmão mais velho, nem nunca conseguiria.
Dez minutos depois, o grupo chegou em seu destino.
O pequeno assentamento sob as copas era composto por grandes cabanas de madeira velha, uma dezena espalhada num raio de seiscentos metros, erguidas entre os troncos das árvores, usando-os por vezes como pilares de sustentação.
Viram primeiramente cerca de dezessete centauros por ali, fêmeas e machos, confeccionando ferramentas ou armas, cozinhando, comendo ou simplesmente conversando e passando o tempo. Logo os olhares caíram sobre o quinteto, todos cansados e espantados.
— Gi... gi... gan... an.... — Um gaguejou, tentando falar e respirar ao mesmo tempo.
— Pedralha! — Adiantou outro. — Está andando!
A maioria se entreolhou, surpresa, mas antes de qualquer outra reação ou resposta, uma voz grave e firme soou vinda de trás.
— O que disse, jovem?
Aproximou-se, então, o centauro.
Era enorme, mesmo para os padrões de um fortíssimo cavalo de guerra. O corpo humanoide, grande e musculoso, estava nu, com apenas o cinto de uma bainha atravessado guardando nas costas uma espada longa de quase um metro e meio. No ombro direito trazia tatuagens pretas, desenhos abstratos feitos com tinta natural. Sua cabeça ficava mais de três metros acima do chão.
Seguindo abaixo da cintura destacava-se um grande corpo equídeo preto como carvão, à exceção das partes junto aos cascos, alvas.
Seus cabelos eram igualmente pretos, curtos e estranhamente bem cortados, unindo-se a uma barba fechada também muito bem cuidada. Com expressão firme na face e olhos cinzentos, encarava todos com seriedade.
A maioria afastou-se para dar-lhe espaço, criando uma espécie de círculo.
— Brank. — Respondeu o líder do grupo menor. Realizou uma espécie de reverência em seguida, repetida pelos demais, curvando levemente o corpo e tocando o peito. — Estávamos vigiando os limites de nosso território, Grillo até pegou alguns ratos gorduchos. — Um dos animanos carregando uma bolsa de couro surrada mostrou-a, um pouco sem graça.
— E? — Brank cruzou os braços, destacando ainda mais o peitoral e os bíceps.
— E então nós vimos... — Respirou fundo, tomando coragem. — Pedralha andando pela floresta.
Alguns dos desinformados inspiraram exageradamente em surpresa, e todos começaram a fazer perguntas. Brank manteve-se inerte.
Por fora.
— Que isso não seja mais uma de suas gracinhas, Dart.
— Queria eu que fosse, irmão. Mas não é.
O grande centauro pensou alguns segundos.
— Aqueles humanos... Malditos, devem ter entrado na floresta. Pedralha sentiu a presença deles.
— Mas se ele estava dormindo, como conseguiu detectá-los, ainda mais de tão longe?
— Ele não é o guardião desta floresta à toa, nunca cometa o erro de subestimá-lo. Aliás, mantivera-se somente em repouso esse tempo todo, nunca esteve dormindo realmente.
— Jamais pensei nisso...
— É no que eu acredito. — Refletiu mais um pouco e deu meia volta. — Todos os guerreiros virão comigo, devemos agir depressa. Peguem suas armas e me encontrem no centro do vilarejo!
A movimentação de animanos se intensificou rapidamente em seguida. Dart olhou por cima do ombro para os rapazes, que ainda não tinham se recuperado totalmente, e trotou rapidamente para sua cabana.
Ao entrar, não trocou muitas palavras com sua companheira, visivelmente preocupada. Deu-lhe apenas um beijo demorado e prometeu que retornaria para o almoço.
Vestiu uma couraça antiga e empunhou um escudo circular de madeira e pele animal.
Deixou o lugar e trotou até onde Brank disse que estaria, onde já concentravam-se outros centauros armados.


O silêncio imperava na formação de jovens guerreiros.
Batiam cascos, tilintavam armaduras, mas nenhum outo som além disso.
O receio de estar na floresta era visível no rosto de cada um. O nome "Pedralha" repetia-se nas mentes de alguns como se aquele fosse o único perigo daquele lugar. Já outros pensavam constantemente em ataques repentinos, em animanos à espreita ou nos animais perigosos.
Endrik, sobre seu cavalo preto, junto aos cavaleiros, orava em voz baixa para Marraria, pedindo proteção, bem como os dois clérigos que faziam o mesmo, acompanhando-o à pé.
O que, de certa forma, seria inútil.
Kira e Bak, na ponta da comitiva, olhavam ao redor esperando ouvir qualquer ruído que não viesse das árvores, dos cavalos ou do metal. Surpreendentemente, perto deles caminhava Bráulio, vestindo uma armadura de placas e couro adaptada para seu porte, que pegara antes das carroças partirem, e segurando com duas mãos seu machado de lâmina dupla. Um minotauro jovem, pelos marrons por todo o corpo musculoso, cascos no lugar dos pés e pernas curvadas para trás, cabeça bovina e chifres curvos apontados para frente.
Sempre em silêncio, alerta.
Aquele era o segundo maior habitat de seres silvestres do continente, quiçá do mundo. Nem mesmo Herbas e os bosques élficos tinham tal amplitude. Com certeza o animano sentia algo peculiar em tal território. Definitivamente não era seu lar, viera do outro lado de Ponte, mas ainda era como se estivesse em casa.
Não mais em território dos homens.
E eles teriam a prova de tal sentimento em breve

O Bastardo da RainhaOnde histórias criam vida. Descubra agora