9. Pó de Fogo

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— Roubo? — Liza estranhou quando foi informada de tudo. Havia escurecido, estavam todos juntos à mesa. Beberam quase toda a panela de sopa de legumes que Bago preparou, embora estivesse um tanto aguada e insossa.
— Só suspeitamos — Respondeu Bago. — Mas Kira e eu vamos ficar de olho mesmo assim.
— Kira? — Olhou para o meio-irmão. — Vai se meter nessa também?
— Não vou deixar Bago sozinho, eles podem realmente vir aqui.
— Isso é trabalho dos guardas, vocês dois não têm que tomar nenhuma providência.
— As espadas dos guardas são cegas! — O anão retrucou. — E estou mesmo afim de espancar alguns gatos.
— Pai... — Reprovou a jovem com olhar sério.
— Vou apenas assustá-los, Liza, para não se meterem de novo conosco. Acender alguma luz de repente, ameaçar com uma arma. Eles recuarão, certamente.
— Vocês estão loucos. — Liza levou até a boca uma colher de sopa rala.
— Vai usar sua Cospe-Ferro, Bago? — Kira quis saber.
— Não sei se ela ainda dispara, está velha e passou muito tempo encostada. Mas você me deu uma boa ideia, vou buscá-la.
Levantou-se e foi ao quarto.
— Não contribua com essa loucura. — A irmã pediu.
— Vai ser até divertido.
— Divertido?!
— Liza! — Bago gritou. — Mãos ao alto!
Saiu do quarto apontando para os dois à mesa uma espécie de bacamarte, do tipo espingarda. A boca do longo cano metálico era discretamente mais aberta e o cabo lembrava o corpo de uma besta, assim como o gatilho. O martelo de pederneira estava desarmado.
— Pai, aponta isso para lá! — Desviou o rosto e tentou proteger-se com as mãos, o que obviamente não daria em nada.
Kira riu.
— Esse trabuco não dispararia nem se a Deusa quisesse, filha! — Bago disse com um sorriso discreto. Olhou para o rapaz. — Vou descer agora, vem comigo?
— Não, preciso de um copo d'água.
— Certo. Mas, de preferência, chegue antes do ladrões.
— Vou tentar. — De relance, olhou para Liz, que abaixou os olhos para a tigela de sopa.
Sem mais nada dizer, Bago desceu as escadas para a forja.
— Ele está animado. — Comentou com a meia-irmã.
— Está cego isso sim... E você precisa acordar cedo para os treinos amanhã. — Retrucou ela.
— Uma noite em claro não fará mal. — Kira deu de ombros. Levantou. Aproximou-se da moça lentamente. Esgueirou-se para trás dela, pousando as mãos em seus ombros.
— Kira...
Afastou uma mecha dos cabelos castanhos e mordiscou seu pescoço. Ela erigiu a coluna, mas não protestou. Alguns segundos e ergueu sua mão até os cabelos escuros do meio-irmão para trocar carícias. Um gemido sutil subia sua garganta.
— Tenho que ir. — O irmão cortou. Afastou-se rapidamente, ela ainda tentou segurar sua mão.
— E-Ei... — Viu o semblante humorado no rosto do irmão. Fechou a cara. — Idiota...
Kira apenas desceu os degraus.
Estava escuro, mas conseguiu ver Bago, de olhos quase colados na janela segurando a Cospe-Ferro com vigor.
— Faça silêncio. — Pediu, sussurrando. Kira assentiu para si mesmo e foi na ponta dos pés até um baú sob a bancada. O abriu com cuidado e encontrou espadas de diversos tipos, tamanhos e larguras. Optou pelo estilo clássico: Mediana, pontuda e dois gumes.
Voltou sua atenção para o anão na janela.
Ficaram cerca de uma hora aguardando. Bago abaixou sua arma e saiu de perto da janela, o rapaz sentou-se na bancada. Em um certo momento os dois viram um quarteto de guardas passando, o que subitamente os desanimou.
Abaixaram a guarda quase totalmente, justamente quando, dos telhados das casas, aproximava-se o perigo.
Os ladrões Frelen, ágeis e atléticos, escalavam as casas e saltavam de telhado em telhado sem fazer um único ruído. Os humanos esgueiravam-se pelo chão, para dar apoio no momento repentino da aparição, responsável pelos felinos acima de suas cabeças.
Mais alguns passos, dois ou três minutos depois, e o gato menor reconheceu a forja. Eles se entreolharam e saltaram no momento certo.

Bago e Kira assustaram-se com três vultos que pareceram cair do céu de repente. Não ouviram nada em seguida.
Dez segundos depois, a porta explodiu em incontáveis pedaços e farpas.
O estrondo assustou Kira outra vez, que instintivamente colocou o antebraço na frente dos olhos. Bago, por sua vez, ergueu seu bacamarte, mirou precariamente na direção da porta e apertou o gatilho. O estampido repentino bastou para os Frelen recuarem de medo, mas, além de um jato de fumaça quente, nada foi de fato disparado. Bolinhas pesadas caíram no chão em seguida, inofensivas.
— Merda de Pó de Fogo! — Xingou. Levou as mãos grandes aos bolsos, apressado.
Algo esbarrou em seu ombro no segundo seguinte, até imaginou que fosse um ladrão. Quando piscou, percebeu quem era e um aviso de alerta escalou sua garganta.
Kira irrompeu da fumaça, de espada em punho e olhar furioso. Fora da Espeto Vermelho, fincou a espada na primeira coisa que encontrou: o ombro esquerdo de um ladrão humano, que berrou de susto e dor. A lâmina atravessou sua clavícula, a ponta surgiu em suas costas. Um fio de sangue escapou antes do fluxo aumentar e a primeira torrente escorrer.
Ao redor, seus parceiros ficaram surpresos e sem reação, intimidados. O primeiro a acordar do transe ergueu sua espada bastarda acima da cabeça e um Frelen pulou, mirando, sedento, as costas do rapaz.
Um segundo estrondo e a cabeça do homem com a espada erguida foi desfigurada por bolinhas de chumbo.
Gritos abafados vinham das casas, ao longe, os quatro guardas deram meia volta e correram para descobrir o que estava acontecendo. Chegariam em breve, mas não interromperiam o massacre.
O felino caiu sobre Kira com as garras expostas, mas não o derrubou de fato. Mais atrás, o líder do bando e os dois humanos restantes entraram na forja, onde Bago terminava de armar sua Cospe-Ferro, colocando a pólvora e a munição pela boca do cano.
Com um movimento rápido, o rapaz puxou a espada de dentro da primeira vítima e acertou o felino nas costelas. O frelen desabou, gemendo e sangrando. Não resistiria muito tempo.
Kirart, então, virou-se para ver o interior da forja, encontrando Bago sendo cercado pelos ladrões. De relance, viu um Frelen fugir do local.
Sob adrenalina, ignorou a ardência nas costas devido à cortes de garra, arrancou a espada do segundo morto e correu para o líder do trio.
A arma do anão ficou pronta à tempo, ele armou o gatilho e disparou quase sem olhar. À queima roupa, sangue espirrou para os lados e um homem desabou para trás. O estrondo assustou o Frelen no meio, que parou de se aproximar. Sua audição sensível estava péssima com tanto barulho, mas seus sentidos aguçados sentiram uma aproximação ameaçadora. Puxou o companheiro ao lado e o jogou para trás. No segundo seguinte, este foi empalado pela espada de Kira.
Sentiu em seguida o cano quente da arma do anão encostar em suas costas.
Era o último do bando.
O bacamarte estava sem balas mas ainda initimidava. Kira puxou a espada ensanguentada, o homem desabou. Preparou-se para o golpe final. O Frelen levantou as mãos.
— Vá. — Ordenou o anão. — E nunca mais pise nessa cidade ou terá o fim dos seus companheiros.
— Bago, não! — Protestou o rapaz.
— Pode deixar, nunca mais verá meu rosto! — Assegurou o meio homem, meio guepardo. Avançou um passo com hesitação e passou por Kira correndo porta à fora. Ele o perseguiu.
— Volte, Kira! — Bago Ordenou.
— Não acredito que o deixou ir! Que merda!
Pessoas saíram de suas casas e assustaram-se com o que viram. Mães mandavam seus filhos pequenos voltarem para dentro e dois ferreiros ajudantes se aproximavam do patrão, aos berros, querendo saber o que acontecera.
— Kirart, volte já!
Ao longe, cansado e sujo de sangue, seja dele ou das vítimas, o jovem desacelerou e assistiu o ladrão disparar para longe. Nunca o alcançaria de fato.
Suspirou e virou-se para a pequena multidão na rua, que por sua vez o encarava com olhos surpresos e curiosos.
— Que merda... — Repetiu.

O Bastardo da RainhaOnde histórias criam vida. Descubra agora