De algum modo, Kira acordou no horário correto, mesmo achando que estava atrasado. Banhou-se nas águas gélidas, vestiu as primeiras roupas que encontrou e deixou seu quarto. Se aprontaria apenas no castelo, então importou-se apenas em chegar na hora correta. Checou a altura do sol pelas janelas e percebeu que sua pressa fora desnecessária. Não achou ruim.
Surpreendentemente, Bago e Liza estavam sentados à mesa. Olharam para ele assim que o notaram. As bochechas da garota estavam coradas e um sorriso bobo perdurava em seus lábios.
— Nunca vi vocês acordarem tão cedo antes. — Comentou o rapaz.
— Foi mesmo um grande sacrifício. — Bago confessou.
— Sim, mas era o único modo de despedir-me do meu noivo. — Ao ouvir tais palavras, a barriga de Kira esquentou.
— Então Bago te contou. — Arriscou um sorriso; não foi uma pergunta. Sentou-se junto à eles.
— Quanto mais rápido a união for arranjada, menos chance terá o noivo de escapar. — Recitou o anão.
— Se é sua preocupação, não vou fugir. — Assegurou o jovem mantendo o meio sorriso. Tocou a mão de Liza com carinho. Os dedos entrelaçaram-se. — Nunca.
— Já vi que é um romântico barato como seu pai.
— É, ele é, sim. — A moça concordou.
— E então, Kira, o que vai comer em sua última refeição em casa?
Ele pensou um pouco.
— Pão e frutas.
— Querido? — Liza se permitiu chamá-lo assim, queria se acostumar logo. — Temos geleia, carne fresca, podemos...
— Mas, querida! — Retrucou ele, porém dizendo a última palavra com um tom mais exagerado e humorado. Ela sorriu. — Tudo bem se for só isso. — Deixou a voz mais calma, quase emocionada. — Sinto que, daqui a algum tempo, vou sentir falta.
— E o que você acha que será sua ração durante a viagem? — Bago retrucou. — Carne e vinho?
Kira riu.
— É, tem razão.
— Eu ainda prefiro geleia. — A garota insistiu.
— Tudo bem, já vou buscar, filha. Mas só por que quero também. — O anão levantou e foi aos armários.
Aproveitando que ele estava de costas, o casal trocou beijos longos, espiando com os cantos dos olhos.
Já na frente da forja, Kira se despediu dos dois. Apertou a mão de Bago firmemente e o abraçou com força dando tapas leves em suas costas. Em seguida, abraçou Liza e sussurrou belas palavras em seus ouvidos. Juraram amor um ao outro.
Com o consentimento do anão, foi atrás de Feroz e o desamarrou: Com toda a certeza, aquele cavalo seria seu maior companheiro na viagem.
Pela última vez, disse adeus àqueles que eram os seres mais importantes de sua vida. Lágrimas iam aos olhos de Liza e Bago manteve-se sério, porém internamente tentava não ceder à tristeza.
Kira subiu em seu cavalo e o mandou trotar. Não olhou para trás até chegar ao castelo. E mesmo esforçando-se, não conseguiu evitar que os olhos ficassem marejados.
Contudo, ao chegar e entrar no castelo, assustou-se com a grande movimentação, principalmente na frente e no interior do arsenal. Os jovens iam de um lado para o outro trajando armaduras incompletas, segurando partes soltas e fazendo perguntas, enquanto servos armeiros os ajudavam. Outros servos terminavam de carregar as carroças com algumas armas, placas extra e provisões. Menos de uma dezena de rapazes, prontos, escolhia suas armas.
Kira desceu de Feroz em meio à bagunça e seguiu, apressado, até o armazém de armas. Um servo o chamou assim que o viu e ofereceu-se para ajudá-lo.
Rapidamente olharam as armaduras. O rapaz escolheu as mesma placas de porte médio que os demais cavaleiros do grupo escolheram: Um peitoral justo com ombreiras conectadas, braçadeira maior do lado esquerdo, perneiras nas coxas e caneleiras. Manoplas até o antebraço e elmo com viseira, além de um casaco em malha de aço sob as proteções.
Vestiu-se depressa.
Sobre suas armas, usou o conjunto que imaginara havia muito tempo, que julgava ser o mais prático e eficaz para lutas montadas e à pé: uma espada longa, com quase um metro de lâmina e punho para duas mãos, e uma arma semelhante, porém menor o bastante para ser usada junto ao escudo que escolhera, um objeto circular todo de madeira com uma lâmina fina de metal na frente, com duas tiras de couro reguláveis por fivelas para o antebraço e um punho apertado para a mão. Pensou em levar uma adaga para emergências, e acabou escolhendo uma lâmina de trinta centímetros e de um só gume.
À exceção apenas do escudo, percebeu que quase todas as armas e armaduras naquele arsenal vinham da Espeto Vermelho, e um certo orgulho o fez sorrir.
Por fim, conseguiu um cinturão de couro que levava tanto a espada menor na lateral direita do corpo e a maior nas costas em bainhas de mesmo material. Já a adaga, conseguiu escondê-la confortavelmente na braçadeira esquerda, maior que a oposta. Canhoto, tomou o escudo com a direita.
Contudo, ficou pronto rapidamente, ao contrário de muitos companheiros que iam de um lado para o outro, indecisos ou apenas confusos. O rapaz olhava para si mesmo e sentia-se feliz, ansioso e empolgado ao mesmo tempo. Sem conseguir ficar parado por cinco segundos no mesmo lugar, deixou a forja para andar um pouco e até afastar-se do calor que fazia lá dentro.
Viu, então, cavalariços apressados carregando placas e mais placas de metal, montando armaduras nos animais. Um, em especial, relinchava e empinava, ficando de pé nas patas traseiras, tentando afastar os seis homens que tentavam contê-lo. Era castanho, e embora o corpo não tivesse o porte dos cavalos de guerra do Duque, ainda era belo e imponente. Kira o reconheceu de imediato e correu até ele, um pouco preocupado.
— Ei! — Gritou. Os homens o olharam e o cavalo pareceu se acalmar um pouco. — Ele não precisa de armadura.
— São ordens de Bak, rapaz. — Um respondeu. Ele e outros continuaram.
Um centauro ordenando que cavalos fossem armadurados? O rapaz achou estranho, mas não comentou.
— Ele é meu, sei o que estou dizendo. Feroz! — Fez barulhos com os lábios, como beijos. O animal obedeceu, puxando suas rédeas da mão de um cavalariço e aproximando-se. Os homens ficaram até surpresos com a obediência.
— A escolha é sua. Mas uma única flecha que acertá-lo poderá ser fatal. — Aconselhou outro servo.
— Não vai ser tão fácil assim, eu lhe garanto. — Sorriu e deu tapinhas no animal, ao seu lado. — Vocês não o conhecem como eu.
Os servos se entreolharam e deram de ombros. Foram atrás dos outros cavalos para prenderem as placas. Kira tomou as rédeas de seu cavalo, montou e esperou dando voltas sem pressa por ali. Pouco tempo depois, Bak deixou o palácio, apressado, descendo habilmente degraus da escadaria à frente da porta. O centauro usava uma armadura parecida com a de Kira no corpo masculino e mais nada além de uma espada longa ao lado da cintura. Atrás do animano, vinham dois humanos, um casal de feições parecidas, pele clara, um de cabelos mais dourados que a outra. Este vestia uma túnica branca com detalhes dourados, mais justa e prática, própria para viagens. Na cintura, um cinto com bolsos de tamanhos pequenos guardando frascos com líquidos escarlates e pequenos pergaminhos. Já a moça trajava um manto branco e cinza e capuz, escondendo vestes sob o tecido. À princípio não trazia nenhum equipamento consigo. Aparentava ser mais nova que o rapaz.
Desceram os degraus largos de mãos dadas e Kira entendeu que eram os filhos do Duque.
Surpreendeu-se mesmo com o último ser à deixar o palácio.
Um minotauro cujo corpo híbrido meio humano, meio bovino, media dois metros e meio de altura. Aparentava ser bem jovem, os pelos marrons não eram tão escuros. Portava um machado duplo de cabo longo e vestia somente uma peça de couro preto cobrindo seu sexo. Seus chifres apontavam para frente, tinham uns quarenta centímetros e eram escuros como carvão.
— Partiremos agora, espero que estejam prontos! — O centauro berrou à frente. Trotou até o arsenal para conferir o andamento das preparações e apressar os atrasados.
As carroças estavam todas preparadas e, mais alguns minutos depois, quase todos os cavaleiros do grupo esperavam em seus cavalos, todos armadurados à exceção de Feroz. Totalizavam treze animais. O restante terminava de se aprontar.
Logo os portões foram abertos e o grupo já se encontrava organizado. Kira ia à frente com os rapazes montados. Atrás, as duas carroças abarrotadas de suprimentos guiadas por quatro escultores, responsáveis pelos reparos dos equipamentos. Em seguida, o responsável pelo grupo, Endrik, o clérigo jovem e particularmente poderoso, além de sua irmã, uma maga cinza que, ao que tudo indicava, resolvera partir com eles no último instante. Os dois também iam montados em belíssimos animais, um cavalo preto e uma égua alva, respectivamente. Em sequência, o corpo de guerreiros à pé.
Momentaneamente, olhos curiosos caíram sobre um dos seis sisrrar da tropa, com características draconianas em desenvolvimento. Era pouco sociável, comum à qualquer ser da raça. Bak circulava pela formação, cumprimentando os jovens. Por fim, outros dois clérigos e quatro lanceiros treinados no castelo.
Enfim, estava acontecendo.
Kira sentia o corpo esquentar de euforia, esquecendo totalmente os riscos que correria e as batalhas que lutaria durante a longa viagem. Estava simplesmente pronto e ansiava por ação.
Os portões estavam escancarados e Bak ordenou que marchassem. O rapaz fez Feroz trotar, o animal moveu as patas e a tropa inteira pareceu segui-lo.
Um arrepio cruzou todo o corpo do rapaz.
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O Bastardo da Rainha
FantasyKirart foi criado e educado pelo anão Bago Blacsmal, dono da Espeto Vermelho, a famosa forja do ducado de Carvalho Velho. Conviver com armas e ouvir histórias de guerreiros viajantes a vida inteira deixou Kira fascinado pelas campanhas militares à...