Capítulo Três - Stella

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Traço um caminho desconhecido com um menino que não reconheço, e tampouco consigo me concentrar nele. As imagens de uma menina se transformando em um animal continuam a me assombrar. Seria aquilo um lobo, um tigre? Também não me recordo. Ao olhar para cima, as nuvens me indicam que a chuva que marcou o local por onde passamos já foi embora, e agora o sol reluz, incomodando meus olhos azuis. Tudo parece estar indo bem quando o garoto ao meu lado começa a correr desesperadamente, mais rápido do que eu achei que fosse possível. Eu crio coragem para virar para trás e planejo meus próximos passos com cautela...

Acordo com os olhos inchados. Que novidade. Além disso, meu cabelo está enredado e minha coluna dói. Já fazem dez anos que estou aqui, sem nenhum benefício. Dez anos dormindo e acordando em uma cama que parece estar me matando lentamente.

Com meu fino travesseiro, tapo meus olhos contra a pouca claridade que entra pela pequena janela de meu quarto durante a manhã. Assim como no sonho, a luz faz meus olhos doerem depois de um rápido contato, mas ainda assim me traz a esperança de uma nova manhã. Ouço meu relógio e observo seus ponteiros lentamente fazendo a volta completa, para repetir tudo novamente depois. Uma boa metáfora para minha vida.

Acordar, tratar da higiene, comer. Sair do meu quarto, voltar para o meu quarto. E fazer tudo de novo no dia seguinte.

– Senhorita Jones? – Marina, minha tradicional enfermeira matinal, interrompe meu devaneio.

– Marina, já disse que pode me chamar de Stella. Sei que é difícil simpatizar com alguém como eu, mas você me conhece há anos, nós somos como a história desse sanatório.

– São tantos nomes, Stella. Tantas situações. Todos aqui são história. Você acha que é a única que não tem estimativa para sair daqui? Acha que é a única que está aqui há anos? – Sei que a mulher não tem a intenção de me machucar, apenas de me trazer para a realidade de uma forma que detesto. Não sou ninguém importante para ela, afinal. Apenas sou sua responsabilidade nas manhãs de segunda a sexta. – Não me diga que está brava, Jones. – Ela revira os olhos. – Pois não fique.

– Por que eu ficaria? Eu não gosto quando você fala assim, é só isso...

– Você fica brava por qualquer coisa, se tenho a liberdade de lhe contar. Não aja como um bebê, não fique choramingando pelos cantos. Pare de ficar desapontada quando tiro os seus antigos desenhos das gavetas. – Scarlett fala cada palavra com desgosto, e entendo que pode não passar de um dia ruim para ela. Porém, estou cansada de ninguém respeitar como me sinto.

– Que eu saiba, o hospício não tirou-me a liberdade de me sentir como bem entender – rebato.

Marina é uma senhora sincera demais e sem nenhum senso de humor, mas ainda assim é a única pessoa que realmente conversa comigo aqui dentro, e me conhece desde que cheguei. Nossas brigas são frequentes, mas faço de tudo para que nossa relação não se torne mais um problema para mim.

– Não vim aqui para discutir isso, perdão. – A mulher quebra o silêncio. – Vim apenas lhe chamar. Pegue roupas limpas e vá para o vestiário. Fique fora do seu quarto até eu lhe chamar de volta, pois haverá alguém limpando suas coisas.

– Obrigada, e peço desculpas também.

Marina sai com um pequeno sorriso estampado em sua face. Mas, no caminho, vejo que ela o troca por sua comum expressão raivosa. Nesse momento, algo cresce dentro de mim. Não sei o que está acontecendo, mas sinto como se tivesse certeza de algo que nunca teria como saber. Apenas abro minha boca. As palavras saem por si.

– Marina, espere! – grito sem perceber minha entonação de imediato para a mulher parada no meio do corredor. Ela poderia me ouvir mesmo se eu sussurrasse. Que eu saiba, idosos ganham dificuldades para ouvir com o tempo, mas Marina nunca teve dificuldades para entender meus resgungos baixinhos. Mais uma vez, o impulso e a certeza aparecem. – Você queria me perguntar uma coisa, não queria?

Ela regride em alguns passos. Vem caminhando até meu caminho, e para poucos metros antes de onde me encontro. Com medo e tremendo, Marina concorda e parece criar coragem.

– Por favor, esqueça toda essa história... – Ela solta tal coragem em meio a fonemas, um tanto travados, mas que posso entender. Concentro-me nas palavras Marina e em minhas certezas duvidosas.

– Prefiro ouvir de você – digo, confiante, mas tentando acalmá-la.

Acho que não há mais coragem em Marina. Acho que estou indo longe demais.

– Sobre nossa conversa, das histórias. – Lembro-me de cada palavra que falamos e confirmo minha certeza – Por que você se acha tão mais especial que os outros? Tão diferente?

– Pois sou a única que não realmente merece estar aqui – solto, fria. Sempre tive uma curiosidade em saber por que eu, uma adolescente já praticamente com os surtos controlados, está aqui presa. Essa minha curiosidade se tornou uma suspeita após um tempo. Hoje volta em forma de palavras.

Saio do quarto e tomo um rumo diferente do de Marina. Percebo, ao passar pelos corredores, como sou diferente desse local. Enquanto eu sorrio, ouço gritos de socorro e a respiração falhada de alguém próximo a mim que acabou de chorar. Desvio o olhar das portas entreabertas e das janelas que mostram alguns poucos quartos especiais com vista para o corredor. Esse comportamento não é humano, muito menos esse lugar com o qual acabei me acostumando.

Chego ao banheiro e me recosto na parede úmida para esperar até que algum dos chuveiros esteja liberado para mim. Uma moça me entrega toalhas brancas e me direciona até o mais distante local para banho. Como tenho apenas cinco minutos, lavo meus cabelos e meu corpo o mais rápido possível e visto minhas roupas limpas. Penteio o cabelo com os dedos, já que meu pente fica em um armário mais distante, junto com poucas outras coisas que ganhei de minha tia-avó.

– Bom dia – digo, cabisbaixa, para quem encontro no caminho para o armário, mas não recebo respostas.

As condições que todos têm aqui me fazem sentir mal. Nenhuma palavra é trocada entre ninguém. Ninguém parece ouvir os lamentos e os sussurros de quem vai passar o resto da vida confinado em um quarto. Alegre demais para chorar e triste demais para continuar sorrindo, pego alguns pertences do armário e deixo meu corpo cair em um sofá antigo da quieta e vazia sala do sanatório.

Sinto-me mal depois do que aconteceu com Marina, e tudo que eu quero é sair dessa rotina, desse local. Desejo isso como desejo respirar ar fresco para amenizar a dor de cabeça.

Cabelos arrumados e joias na cabeça não fazem diferença quando as vozes falam mais alto.

The Walls Of The City - As paredes da CidadeOnde histórias criam vida. Descubra agora