Arrumando a bagunça

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POV NANDA


Acordei com o barulho irritando e contínuo do celular vibrando no criado-mudo ao lado. Era sexta e eu sabia que deveria ir a loja e que, como toda simples mortal, deveria trabalhar. Mas minha escapadinha na madrugada anterior ao apartamento de Levi me havia custado algumas horas de sono, embora tivesse valido MUITO a pena.

Tateei até tocar o pequeno aparelho, ainda de olhos fechados e o levei a orelha sentindo que até mesmo falar significava um grande esforço.

— Nanda?

A voz dela estava embargada pelo choro. Não era o mesmo tipo de pranto, já totalmente identificável, que eu conhecia de quando ela brigava com Bernardo. Esse era um pranto diferente, o que me fez abrir os olhos em seguida.

Apoiei as costas na parede enquanto me sentava lentamente, com o coração um pouquinho acelerado.

Eu já sabia o que viria a seguir, mas mesmo assim relutei em escutar.

Talita quebrou e seus soluços doeram em mim.


Parados ali, lado a lado enquanto o céu se esmerava em ser quase que totalmente aterrador, observei os rostos pálidos e cansados ao redor. Aquele não era um típico dia de domingo em família. Ninguém estava conversando ao redor de uma mesa rodeada de crianças correndo de um lado a outro. Ninguém estava conversando sobre o jogo de futebol a tarde e sobre quantas cervejas haveriam na geladeira. Ninguém estava reclamando da quantidade de trabalho que teria para aquela semana nem de como os pais controlam sua vida.

Embora fosse domingo e a família estivesse ali, o céu estava carregado de nuvens cinzas de chuva, ainda que nem uma gota tivesse caído ainda e todos vestiam negro como se fosse um uniforme estranho.

A mãe de Talita vinha lutando contra essa doença a anos. Uma mulher extraordinariamente forte e de descendência italiana. Uma mulher com a voz firme e ideais (ainda que nem sempre corretos) difíceis de mudar. Foi difícil de derrubá-la. Muitas vezes a vimos em uma situação de desgaste extremo, mas ainda podia sacudir sua colher de pau na cozinha e gritar que a comida (sempre para um batalhão) estava na mesa e que ficaríamos de castigo caso não fôssemos comer agora mesmo (por mais que ambas já fossemos grandes e a palavra "castigo" já não nos amedrontasse mais). Eu havia conhecido Talita na faculdade, mas sempre imaginei como teria sido conhece-la de toda a minha vida. Sua mãe deixava evidente que tipo de amizades da filha aprovava e eu tinha, por um milagre, passado na prova então ela simplesmente jogava no ar palavras como : castigo e hora de dormir como se tivéssemos crescido juntas e ela fosse responsável por me manter também nos eixos.

Os olhos de Amanda encontraram os meus do outro lado da numerosa roda que havíamos formado em torno do caixão. Brian parecia desconfortável a seu lado. Trocava o peso do corpo de perna e olhava ao redor nervoso, como se esperasse que tudo aquilo terminasse no próximo segundo. Eu mal podia acreditar que eles já levavam seis meses juntos. Quem poderia apostar nisso? Quer dizer, Brian era o maior cretino da faculdade! Mas de alguma forma o jeito doce e tão típico de garotas como Amanda o tinha quebrado, e assim, sem que ela fizesse muito esforço, apenas sendo totalmente ela mesma, acabou conquistando essa crosta de superioridade que ele carregava na pele.

Meu corpo se tencionou quando escutei o choro torturado da minha amiga a alguns metros de mim. Seu pai, um homem bonito para a idade que tinha, a abracou parecendo querer guardá-la em seu peito enquanto Talita escondia o rosto em uma flanela velha e amarelada que havia sido bordada a mão. Mordi os lábios enquanto me sentia completamente impotente. Queria ir até lá e dizer que tudo ficaria bem, mas como eu poderia saber? Eu não havia passado por isso. Meus pais, apesar de todos os problemas, ainda estavam ali comigo.

Pensei na discussão do jantar e me senti terrível. Sim. Papai estava fazendo escolhas no mínimo questionáveis. Mas quem me garantia que eu não cometeria erros piores no futuro? Então ele não podia se equivocar? Eu deveria ficar apontando o dedo e falando sem parar o quanto ele estava errado? 

Senti a mão de Levi apertar a minha e agradeci pelo conforto que o toque dele me proporcionava.

E os minutos passaram...


Um mês depois...

— Fala serio isso é estúpido!

— Nanda...

Bufei enquanto me sentava na cama e guardava meus patins na mochila esportiva. Coloquei a mochila no ombro e revirei os olhos enquanto Levi sorria da minha expressão contrariada.

— Eu sei que eu concordei com isso, mas posso voltar atrás?

— De maneira nenhuma! — Empurrou-me em direção a porta do meu quarto e me obrigou a sair. O apartamento estava vazio. Fazia um dia incrível lá fora e mamãe havia saído com um grupo de amigas (sim, eu estava radiante por isso) depois de deixar meu irmão na casa da vovó.

— Mas...

— Não é o fim do mundo Nanda, você vai ficar bem.

— Mas parece!

Fiz um bico enquanto tomávamos o elevador.

Me despedi dele na entrada do estacionamento do prédio enquanto me arrastava lentamente em direção ao carro.

O que tinha acontecido com Talita me havia feito pensar, e de pronto, decidi me dar uma chance de arrumar as coisas com o meu pai, mesmo que isso incluísse um dia de passeio esportivo em família com a biscate no calçadão da praia.

Se alguém o julgaria por suas escolhas, esse alguém não seria eu.

Eu era sua filha, apesar de tudo.

Sempre foi vocêOnde histórias criam vida. Descubra agora