CAPÍTULO 44

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Querido Jim Morrison,

Ouvi “Light My Fire” ontem à noite e me forcei a sair do torpor em que tenho andado. Fiquei enrolando no quarto por um tempo, mas não foi como costumava ser no carro com Sky nem no festival de outono, porque fiquei pensando em como você foi encontrado morto na banheira. Causa mortis: desconhecida. É difícil não saber.

Em uma foto sua, aquela famosa que estampa todas as camisetas e os pôsteres, seus olhos parecem ferozes. São como uma chama, nos atraindo e nos afastando ao mesmo tempo. Seus braços estão abertos, como se você fosse uma cruz. Seu peito está nu, vulnerável, mas forte como o de um animal. Li que, quando o Doors estava gravando um dos álbuns, você só ia às vezes ao estúdio e, quando aparecia, em geral estava bêbado. Havia pilhas de ossos de frango, embalagens de suco de maçã e garrafas de vinho rosé por toda a parte. E às vezes você gritava com as pessoas. É triste quando todo mundo sabe quem você é, mas ninguém te conhece. Imagino que você tenha se sentido assim. As pessoas veem o que querem. Usar calça de couro e ter um belo corpo, beber muito vinho caro, ter uma voz que soa rouca e seca, essas características formam a imagem que as pessoas têm de você.

May era o ideal do que eu queria ser. Eu a via como livre e corajosa, pensava que o mundo pertencia a ela, mas não tenho mais tanta certeza de que era realmente assim. Jim, quero que as pessoas me conheçam, mas, se alguém olhasse dentro de mim, se visse que sinto coisas que não deveria sentir, não sei o que aconteceria.

Estou na aula de álgebra. Acho que Evan Friedman está quase se tocando de novo. Britt está se olhando no espelho de um estojo de maquiagem apoiado meio escondido no colo dela, tentando não olhar para ele. Os dois terminaram outra vez.

Faz cinco semanas e dois dias que Sky me deixou. Eu gostaria de dizer que estou superando, mas é óbvio que não estou. Às vezes, depois da aula, pego o caminho mais comprido até o estacionamento, pela quadra, e o vejo beijando Francesca perto da arquibancada ou abrindo a porta do carro para ela. Quero socar o peito dele com toda força e quero que ele me abrace para eu parar. Quero que ele me beije de novo e desfaça essa situação. Mas agora ele está atrás de uma parede de vidro grossa, e não importa o quanto eu bata, não consigo quebrá-la. Eu só vou me machucar.

Francesca é péssima. Ela quer me bater. Ontem, saí da escola e fui até o beco, e ela estava parada no fundo com outras duas garotas que eu nunca tinha visto. Comecei a andar rápido, com a cabeça baixa, só querendo passar, mas elas me cercaram.

Francesca disse:

— Vi que você estava olhando para mim e para Sky.

Meu coração quase saltou do peito. Tentei mantê-lo no lugar, porque não queria que fosse parar no asfalto, ao lado do anel dourado que alguém deixou cair em uma rachadura. Não queria chorar de jeito nenhum.

— Vou avisar uma coisa, menininha — ela disse. — Ele não quer mais você.

Não era justo da parte dela. Eu sabia que Sky não me queria mais. Ela não sabia como doía. Odiei Francesca. Eu podia sentir as lágrimas ardendo no fundo dos olhos, mas não ia chorar na frente dela. Não ia. Então eu disse:

— Você não acha meio ridículo ainda ficar circulando pela escola?

O rosto dela ficou vermelho.

— Eu vou acabar com a sua raça. Vou bater tanto em você que ninguém vai reconhecer seu lindo rostinho.

Eu precisava pensar rápido. Meu corpo oscilou, e meu cérebro ligou todos os pontos que não deveria ligar. Ela é bem maior do que eu e sem dúvida podia me bater.

Então eu falei:

— Em vez disso, por que não fazemos um jogo? — Forcei a passagem e fui até a rua. Então me virei. — Chama jogo do morto. Quem aguentar mais quando um carro passar ganha.

Deitei na rua e fechei os olhos. Ouvi um carro se aproximando ao longe.

Ouvi que estava perto, apesar de ainda não estar perto demais. Eu podia aguentar muito mais.

Ouvi Francesca dizer para as amigas:

— Meu Deus. Essa menina é totalmente louca. Vamos embora daqui.

E me dei conta de que tinha ganhado. Eu sabia que agora ela teria medo de mim, e não o contrário.

Ouvi o carro chegando mais perto. E então, do nada, ouvi a voz de Sky.

— Laurel! Que merda você está fazendo? — ele gritou.

Levantei, sai correndo e me lembrei da noite em que fiquei boa no jogo.

May sempre foi a melhor, a mais corajosa. Carl era quase tão bom, mas nem tanto. E Mark ficava bem atrás dele. Eu era a última. Assim que ouvia o carro virar a esquina, eu queria correr. Tentava esperar ao máximo, mas, quando levantava e tirava a venda, via que o carro ainda estava a muitas casas de distância e me sentia uma idiota por achar que estava prestes a ser atropelada. Eu sabia que Mark nunca ia gostar de mim porque eu tinha medo, e eles viam isso. Se ao menos eu fosse destemida como May, pensava. Se ao menos fosse empolgada, audaciosa e linda como ela.

Pensava que, se não fosse tão covarde, tudo seria diferente. Talvez ele me amasse.

E então alguma coisa mudou. Foi depois que May começou a me levar ao cinema. Estávamos jogando, e eu deitei. Senti um novo tipo de silêncio.

Como se nada pudesse me atingir. Esperando, apenas esperando o carro. E, quando o ouvi virar a esquina, eu não tive medo de nada. Sabia exatamente onde estava. Não precisava dos olhos. Eu podia ver a rua, o carro se movendo. Estava na frente da casa dos Ferguson. Dos Padilla, dos Blair, dos Wunder — eu sabia a qual distância estava. Passou pela casa de Carl e Mark. Ouvi May gritar:

— Laurel! Sai do caminho!

Mas não, eu ainda não precisava sair. Esperei mais um último segundo. E então saí rolando, corri e vi o carro passar. Quando fui até a calçada, May disse:

— Laurel! Qual é o seu problema?!

Ela parecia assustada de verdade. Como eu sempre ficava, com medo por ela. Achei que Mark ficaria orgulhoso. Que bateríamos as mãos. Mas ele estava branco como um fantasma. May me abraçou e disse:

— Nunca mais faça isso!

— Mas eu ganhei, não ganhei?

May falou, sem fôlego:

— Sim. Você ganhou.

Depois disso, nunca mais jogamos. E tive certeza de que Mark nunca me amaria. Eu mudei.

Ouvi a voz de Sky ecoando. “Que merda você está fazendo?” Continuei correndo, o mais rápido possível, levando ar até os pulmões. Correndo pelas ruas do bairro, pelas sombras formadas pelos galhos tortos das árvores, pela fileira de casas que pareciam ser seguras. Até só conseguir ouvir minha própria respiração, tão alta, parecendo um oceano.

Para minha sorte, a tia Amy chegou atrasada para me pegar, então quando voltei correndo para o estacionamento ela ainda não estava lá. Sky, Francesca e as outras garotas tinham desaparecido. A tia Amy ficou chateada por se atrasar, então perguntou se eu queria comer batata frita.

Desejei ir para casa, onde minha mãe estaria fazendo enchiladas para o jantar e May colocaria a mesa, dobrando guardanapos em formato de diamantes, como sempre fazia.

Beijos,

Laurel

Love Letters To The Dead Onde histórias criam vida. Descubra agora