CAPÍTULO 32

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Querida Judy Garland,

Hoje é o segundo dia do recesso, e amanhã já é véspera de Natal. Por sorte, a tia Amy concordou que eu ficasse com meu pai as férias inteiras.

Sei que o nascimento de Cristo, a salvação e as coisas dessa época do ano são importantes para ela, mas não estou a fim de participar. O clima está deprimente na casa do meu pai, mas os fantasmas são nossos, e é com eles que quero ficar. Mesmo que a tia Amy e meu pai não sejam exatamente melhores amigos, ela vem passar o Natal com a gente, porque não quero que fique sozinha. Comprei para ela um calendário superlegal do Advento, que dá para usar o ano todo, com várias imagens de Jesus. Para meu pai foi mais difícil, mas fiz uma cesta de pegadinhas — almofada de pum, aranha de plástico, chiclete que deixa a boca azul —, para lembrá-lo de como gostava desse tipo de coisa.

Já assisti a Agora seremos felizes duas vezes hoje. E chorei as duas vezes que você cantou “Have Yourself a Merry Little Christmas” com a voz cheia de nostalgia. Eu me pergunto se, ao cantar, você estava pensando no Natal de quando era criança, cantando “Jingle Bells” no palco do cinema do seu pai. Ele morreu quando você tinha só treze anos, logo depois de você assinar contrato com a MGM. Ele, que estava tão orgulhoso, levando-a ao estúdio toda manhã e a acompanhando à escola. Quando seu pai morreu no hospital, você estava no rádio, cantando para ele. Nem conseguiu se despedir.

Este vai ser meu primeiro Natal sem May.

Depois que os créditos subiram pela segunda vez, me dei conta de que, em algum momento, eu precisaria tirar o pijama. Como acho que meu pai anda muito deprimido para comemorar o Natal, decidi alegrá-lo. Busquei a caixa com enfeites no sótão, peguei a escada do galpão e estava prestes a pendurar as luzes do lado de fora da casa para que estivessem piscando quando meu pai chegasse do trabalho.

Eu estava cambaleando na escada, tentando levar aquele monte de luzes para o telhado, quando Mark, um garoto da vizinhança, apareceu.

Conheço ele e o irmão, Carl, desde que nasci, porque nossos pais se revezavam para cuidar de nós. Quando eram menores, a mãe deles os vestia com estampa xadrez de cor diferente e penteava o cabelo ruivo dos dois para o lado. Eles sempre cheiravam a cloro por causa da piscina onde íamos nadar todo verão, mesmo depois que ficamos grandes demais para precisar de babá. Enquanto brincavam de pega-pega de olhos fechados e tentavam afogar May, eu nadava e tentava não reparar em Mark de sunga.

Eu sabia que eles eram gêmeos e deviam ser iguais, mas, para mim, Mark era diferente de todo mundo que eu já tinha visto. Ele foi o primeiro garoto por quem me interessei. Mas tanto ele quanto Carl estavam apaixonados por May. Eu era nova demais para ele. Os dois me chamavam de “garotinha”.

Neste ano, Carl e Mark foram para a faculdade, e eu não os via desde o funeral de May. Eu me lembro deles de terno na nossa casa, com os pais. E me lembro de ter encarado um pouco, porque não consegui distingui-los.

Mas, agora, eu sabia que era o Mark. Ele chamou:

— Ei! Quer ajuda?

Desci da escada. Dali dava para ver a casa dele no fim da rua, onde seus pais e Carl davam os retoques finais na decoração que costumava ser a melhor do quarteirão e incluía um Papai Noel inflável. Ao lado deles, o Sr. Lopez, um vizinho mais velho, estava mexendo em uma manjedoura que brilha no escuro, atrás do portão de ferro, também decorado. “Jesus foi preso”, May costumava brincar.

Será que eu ainda tinha uma queda por Mark? Acho que não, agora que estava com Sky. Ainda assim, era bom vê-lo, como se fosse a memória de outros tempos.

Quando ele ofereceu ajuda, respondi, rindo:

— Claro. É mais difícil do que parece.

Penduramos as luzes juntos, sem conversar muito, só falando sobre como colocá-las nos ganchos e por onde passar a extensão.

Quando finalmente descemos do telhado, estava começando a escurecer.

— E então, como vai a faculdade? — perguntei.

— Tudo bem. — Ele sorriu. — É mais difícil do que eu pensava. Mas morar sozinho é legal. Você vai gostar. — Ele me olhou de cima a baixo.

— Que louco — disse. — Você cresceu.

— Pois é — comentei, com um sorriso. — Acho que sim.

Eu torcia para que ele não falasse sobre May e sobre como sentia muito e, ainda bem, ele não falou. Em vez disso, perguntou:

— Como está seu pai?

— Bem. Está no trabalho. — Apontei para as luzes. — Estou preparando uma surpresa. Obrigada pela ajuda.

— Bom, passa lá em casa se quiser uns biscoitos. Minha mãe praticamente não sai da cozinha — ele disse.

Assenti, mesmo sabendo que não ia aparecer.

Quando meu pai chegou em casa e viu as luzes, disse que despertaram seu espírito natalino, então fomos comprar uma árvore no lugar de sempre, em South Valley. As tradições reavivam a memória. Me vi com May correndo entre as fileiras de árvores, procurando aquela que achávamos que seria deixada ali se não a levássemos. Escolhi a mais esquálida de novo, e meu pai e eu rimos.

Então voltamos para casa e começamos a decorá-la. Meu pai colocou o disco de Natal de Bing Crosby — o que tem “Mele Kalikimaka” —, mas, quando sentou no sofá para me ver pendurar os enfeites, houve um silêncio arrebatador. Cada um de nós parecia carregar o peso da família e do que ela tinha se tornado. Os sinos que fiz no primeiro ano do ensino fundamental, com papel laminado, glitter, caixa de ovos e barbante vermelho. As estrelas de massinha, os animais, as pinhas. Meu favorito, um anjo de vidro com o nome de May. Esse eu pendurei na frente.

Quando estava colocando o festão, minha mãe ligou. Ouvi a voz do meu pai tensa ao sair com o telefone para falar com ela. Depois ele o trouxe para mim.

Ela disse que é estranho ver o dia ensolarado e ainda estar quente na época do Natal. Disse que está claro e abafado na Califórnia. Tentei imaginar onde ela está e vislumbrei cavalos com guizos correndo por um campo de palmeiras. Não fazia sentido. Eu disse a ela que queria biscoitos de meia-lua. Achei que isso fosse fazê-la desejar estar em casa, porque ela sempre assava biscoitos no Natal. O açúcar de confeiteiro é como passar uma nuvem na peneira, e ele gruda nos biscoitos ainda quentes. Eu me lembro de roubá-los com May antes de esfriarem.

— A receita está na caixa marrom, querida.

— Eu sei. — E então disparei: — Quando você vai voltar para casa?

— Não sei, meu amor. — Ela parecia tensa. — Este tempo aqui está me fazendo bem, sabe?

Fiquei quieta. Minha mãe decidiu mudar de assunto.

— Seu pai disse que você está namorando.

— Sim.

A voz dela pareceu animada, como uma amiga querendo fofocar.

— Então me conte! Como ele se chama?

— Sky.

— Ele é bonito?

— É.

— Você está tomando cuidado, Laurel?

— Estou.

Minha mãe deu um longo suspiro.

— Mandei alguns presentes pelo correio. Devem chegar amanhã.

— Certo, obrigada. — E então perguntei: — Você foi ver o mar?

— Ainda não — ela respondeu. E então emendou: — Feliz Natal, Laurel.

— Feliz Natal, mãe — respondi e desliguei.

Beijos,

Laurel

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