CAPÍTULO 16

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Querida Judy Garland,

Estou na aula de inglês, sem prestar atenção porque estou escrevendo esta carta, o que é meio irônico, porque, em tese, isso tudo começou como uma tarefa de inglês que eu nunca entreguei.

Ontem, depois que desliguei o telefone com minha mãe, entrei no Google Earth e tentei encontrar o lugar onde ela está. A Califórnia estava pintada de cinza, marrom e verde, como todos os outros estados. Eu sabia que o rancho ficava perto de Los Angeles, mas só isso. Examinei o local, vendo a imagem da cidade feita por satélite, tentando encontrar algum sinal. Quando aumentei o zoom, a imagem perdeu o foco, até chegar à visualização de uma estrada que não dava em lugar nenhum.

Depois resolvi digitar o endereço de onde você morou no deserto, na cidade de Lancaster, na Califórnia. Parecia uma vizinhança normal, e eu até conseguia me imaginar lá. Minha mãe disse que, antes de se tornar Judy Garland, você era Frances Ethel Gumm (mas te chamavam de “Baby”), de Grand Rapids, Minnesota. Sua família se mudou para Lancaster quando você tinha quatro anos. Era um lugar seco e coberto de pó, mas, depois das chuvas de inverno, quilômetros de papoulas vermelhas surgiam em toda parte. Encontrei uma foto das papoulas de Lancaster na internet, o que me fez pensar em você pegando no sono num campo de papoulas emO mágico de Oz, depois do feitiço da Bruxa Má. Minha mãe nem chegou a contar essa parte, mas li que sua família se mudou por causa de rumores de que seu pai dava em cima dos lanterninhas do teatro da cidade. Seus pais costumavam brigar tanto que a assustavam, mas você continuou cantando. Sua mãe se empenhou para transformá-la em uma estrela. Você percorreu o circuito dos espetáculos com suas duas irmãs mais velhas — primeiro como The Gumm Sisters, depois The Garland Sisters, e então assinou sozinha um contrato com a MGM.

Quando pequena, minha irmã era um pouco como você. Ela era a centelha da família, aquela que todo mundo esperava ver brilhar, aquela que tentava impedir qualquer briga. Acho que por causa da história que minha mãe contava, sobre May ter reunido a família, ela sentia que era sua função manter as coisas assim.

Na mesa de jantar, se minha mãe e meu pai começassem a discutir, eu ficava sentada em silêncio, me segurando para não chorar. Mas May desaparecia e voltava usando um collant. Ela ia até a sala, onde todos podíamos vê-la, e começava a fazer pontes e piruetas. Era impossível não olhar. Ela dava estrelas e saltava, e, se os dois ainda não tivessem parado de brigar, dava mortais. Dizia para a gente olhar e fazia um movimento.

Nós aplaudíamos, e quando terminava o show, ela perguntava:

— Podemos tomar sorvete de sobremesa?

E então minha mãe pegava as tigelas, e tudo de ruim desaparecia por um momento.

Mas, de vez em quando, minha mãe estava em uma “noite ruim” e não importava quantos saltos May desse, quantas canções cantasse ou quantas piadas contasse, nada mudava o humor dela, que apenas colocava a mão na cabeça de May e dizia:

— Desculpe, amor, mas estou tendo uma noite difícil.

Ela dizia que estava muito cansada para contar uma história antes de irmos dormir. Então nos colocava na cama mais cedo e se escondia no quarto dela. Meu pai ia atrás e tentava acalmá-la. Quando não funcionava, nós o ouvíamos sair de casa.

Ficávamos na cama, May e eu, as duas fingindo dormir, mas totalmente acordadas, e pela parede ouvíamos minha mãe chorar. Eu não percebia na época, mas talvez ela estivesse pensando na própria mãe, que bebia demais, no pai que morrera ou na vida que achou que teria na Califórnia como atriz, e em tudo o que não realizou. Nessas noites, May e eu não éramos o suficiente. E, mesmo que não entendêssemos, de alguma maneira sabíamos disso.

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