CAPÍTULO 46

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Querido Heath Ledger,

Hoje à noite passou O cavaleiro das trevas na TV. Vi com meu pai. Uma coisa que ainda fazemos juntos é assistir a filmes. Filmes e beisebol, mas a temporada só vai recomeçar daqui a algumas semanas. Quando o filme acabou e os créditos subiram, meu pai disse, antes de levantar e ir para a cama:

— O mundo mudou, não mudou?

A frase pareceu carregar o peso de tudo o que não podemos falar.

Meu pai costumava ser feliz. Um homem com uma família. Super-heróis costumavam ser indestrutíveis. Não perdiam o amor de sua vida, não deixavam pessoas boas morrerem, não abriam mão de seus princípios nem tinham de viver o luto. E os vilões das histórias costumavam ser apenas maus, não humanos que se transformaram em algo aterrorizante. Mas O cavaleiro das trevas é como a versão adulta de uma história de super herói.

O Batman também tem problemas — ele perde a mulher que ama e tem que se entregar para manter as esperanças da cidade. Você está brilhante no papel do Coringa, a personificação do mal.

Para dizer a verdade, o filme me assustou. Você me assustou. Quero contar o que eu aprendi com ele, mas não consigo. Tudo o que está ali é um sentimento de terror no fundo do estômago, e esse medo de não existir mais final feliz.

Estamos na segunda semana de março. A primavera está chegando, mas o ar continua frio, o vento vem em rajadas para assustar os botões que começam a florescer. Faz muito tempo que não escrevo uma dessas cartas — quase um mês. Acho que, depois que rasguei o pôster do Kurt, perdi a vontade. Até que assisti ao filme e comecei a pensar em você. A primeira vez que te vi foi naquele Dez coisas que eu odeio em você, e sempre me lembro daquela cena em que você pula na arquibancada e canta “Can’t Take My Eyes Off You” na frente do time de futebol feminino para conquistar o coração da garota de quem gosta. Depois desse, mesmo com muitas propostas, você não fez mais filmes adolescentes. Em vez disso, você ficou comendo macarrão instantâneo no seu apartamento e esperando.

Você não queria só ser famoso, queria ser verdadeiro consigo mesmo. E, no fim das contas, conseguiu mais papéis, papéis melhores, e se tornou um adulto que fez parecer bom crescer, como se não fosse preciso perder a essência. Você virou o tipo de pai que qualquer filha gostaria de ter.

Quando o encontraram em seu apartamento, depois de uma overdose de remédios, eu realmente achei que tivesse sido acidente. Ainda não acho que você queria morrer.

Li que estava planejando comprar um galpão no Brooklyn para sua filha, para vocês transformarem em um drive-in com cinema particular. Quando penso nisso, quase choro. Você teria parado o carro ali, vocês dois no banco da frente comendo pipoca e balas, e rindo de um desenho animado que passasse na tela — o tipo de história que termina como deve, ao contrário daquelas que nos assombram conforme crescemos.

Este mês passou voando, mas acho que tenho algumas coisas para contar.

Uma é que Hannah decidiu achar bonito ter hematomas. Ela começou a pintar roxos na maçã do rosto com sombra de olho. E parecem reais.

Natalie diz para ela não fazer isso, mas ama tanto Hannah que só beija os hematomas e diz que vai cuidar deles. Às vezes nosso corpo devia mostrar mais as coisas que nos machucam, as histórias que mantemos escondidas dentro de nós.

A outra coisa é que Hannah conseguiu a habilitação provisória, e no sábado pegamos a estrada da montanha para ir à casa de um cara chamado Blake. Hannah o conheceu em seu novo emprego, no Macaroni Grill. Ele é ajudante de salão, e ela é a recepcionista. Ela arrumou esse novo emprego porque Natalie ficava brava toda vez que ouvia falar de Neung, que Hannah jurou nunca mais ver e então saiu do Japanese Kitchen. Mas ela ainda tem Kasey e, agora, Blake. Ela não gosta de levar Natalie para a casa dos namorados, mas também não quer ir sozinha, então lá fui eu.

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