Vinte e quatro

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SABE AQUELES MOMENTOS em que você é aparentemente possuída por alguma coisa e faz algo que pode, provavelmente, se arrepender depois?
        Esse sentimento que lhe deixa com um pulga atrás da orelha? Que faz você se sentir culpada por algo que fez? Lhe tortura mentalmente?
        Pois é... era assim que estava me sentindo ao escutar aquelas palavrinhas saindo da boca de Natsu.
        "Afinal, Lucy é... meu brinquedinho pessoal."
        Traída.
        Acho que essa é uma ótima palavra para se usar no momento.
        "Ferida"; também serve.
        Engoli em seco, encostando-me na parede fria. Meus olhos continuavam arregalados de surpresa.
        Arrependida.
        Sim... essa palavra define muito melhor o que sinto. Sinto-me arrependida por ter confiado em Natsu.
        Sou tão idiota!
        Eu sabia! Sabia! Lembro-me muito bem de ter dito a ele para ficar longe de mim! De dizer que meu pior erro em Magnolia fora conhecê-lo!
        Então por quê? Por que deixei-me confiar nele?
        Burra! Burra! Burra! Burra!
        Lágrimas rolaram por meu rosto.
        E é aí que entra a parte em que eu fui "possuída".
        Explodi em uma onda enorme de fúria.
        Como Natsu pôde dizer aquilo?
        Em um ato impensado irrompi pela porta, surpreendendo a todos — ou pelo menos quase todos.
        Gray massageava as têmporas — tentando imaginar, provavelmente, porque Natsu não o ouvira —, Gajeel tinha um sorriso brincalhão nos lábios, parecia estar bem ansioso para saber minha reação. Hunf! Um brutamontes sim! Não desminto Levy-chan nunca mais! No entanto... se ele não tivesse incentivado o rosado a continuar, não descobriria o quanto Natsu é cretino!
        É um ponto de vista, apenas.
        Caminhei lentamente até o rosado em questão, que encarava-me embasbacado. Seu queixo havia caído devido a surpresa.
        — Lu... Lu... Lu... — Gaguejava.
        Parei em sua frente. Engoli em seco.
        — É engraçado, certo? — Murmurei em um fio de voz. Minha garganta estava seca, por isso minha voz estava rouca, o que ajudava a demonstrar minha dor.
        — Luce... — Balbuciou com um olhar triste. — Desde quando...
        — Lucy.
        — O quê?
        — Não ouse me chamar de "Luce". É Lucy para você. Ou melhor, Heartfilia. Não me chame pelo primeiro nome e nem por nenhum apelido... nunca mais! — Praticamente gritei.
        — Lu... — Ele estava sem ação nenhuma. Rendi-me aos sentimentos e deixei as lágrimas rolarem livremente por meu rosto. — E-Eu...
        Engoli em seco.
        — Não diga nada. — Interrompi-o. — Não se dê a esse trabalho.
        Virei-me e caminhei para fora da sala.
        — Sinto muito por isso, mas terá que procurar outro brinquedo. — Sussurrei.
        — E-espere! Lucy! — Fechei a porta estrondosamente.
        Não queria ouvir. Nada que o Natsu dissesse me faria desculpá-lo.
        Limpei as lágrimas, respirei fundo e, com um olhar decidido, voltei ao salão.
        — E então, como foi? — Indagou-me Igneel, que esperava ao lado da porta que dava no silencioso corredor. Segurei o grito.
        Soltei um longo suspiro antes de responder-lhe:
        — Foi incrível! Descobri o quanto seu filho é maravilhoso.
        Sorriu.
        — Ele agiu como um cretino, não foi? — Questionou com um sorriso sábio brincando levemente nos lábios.
        Encarei-o surpresa.
        — Sim... — Confirmei. — C-como você....
        — E tem mais! — Interrompeu-me. — Você quer ir para a mansão logo pois não quer encará-lo.
        Fiquei calada por alguns segundos.
        Não quero encarar Natsu?
        Acho que não... Provavelmente o mataria devido à raiva...
        — Acertou de novo. — Concordei.
        — Sabia. — Sorriu novamente. Apoiou um cotovelo na estátua de mármore próxima dele e tomou um olhar desanimado. — Seria tão bom se me entendesse com Aries da mesma forma que entendo com você... — Murmurou lançando o olhar até a jovem que dançava e parecia se divertir muito no centro da pista de dança. Aries atraia muitos olhares dos homens que dançavam a sua volta, como pude perceber.
        — Aconteceu algo entre vocês? — Indaguei, enquanto nos dirigiamos até uma mesa e sentando-nos em cadeiras próximas.
        — Luceeeee! — Brandiu ele em um guincho, deixando seu rosto enterrar-se em meu peito.
        — I-Igneel-san?! — Exclamei surpresa por seu ato.
        Fungou.
        — E-eu... — Gaguejou. — Fui chamar a Aries-chi para dançar e ela praticamente acabou com a minha honra como pai.
        — Aries-chi, você disse... — Murmurei. Soltei um suspiro leve e acariciei seus cabelos. Ele parecia uma criança... — Está tudo bem, Igneel-san. — Confortei. — Você mesmo disse que sabe o motivo dela tratá-lo assim. Então por que não tenta arrumar isto?
        — Bem que queria. — Fungou, levantando a cabeça. As lágrimas dele pareciam brilhar... — Mas a Aries não dá chance.
        Sorri.
        — Tudo ao seu tempo, Igneel-san. Uma hora ou outra, ela vai o perdoar...
        Deu um sorriso satisfeito.
        — Então vamos fazer uma promessa! — Estendeu-me seu mindinho. — Tento melhorar minha relação com a Aries, e você se entende com o Natsu. — Congelei. — Que tal?
        Pensei durante um instante.
        Aries seria bem mais feliz caso tivesse o pai ao seu lado... Mas o Natsu é um cretino... No entanto a Aries deveria se entender com o pai...
        Aries... Natsu... Aries... Natsu... Aries...
        Ah! Que se dane o Natsu! Farei o melhor para a Aries, que é minha amiga!
        — Aceito! — Concordei, trançando meu dedo no dele.
        — Eba! — Abraçou-me novamente.
        — O que você pensa que está fazendo? — Indagou irritada Ultear, que estava vendo toda nossa cena. Golpeou o rosado na cabeça.
        — Isso doí, Ur! — Reclamou ele, levantando-se com as mãos apoiadas onde recebera o golpe.
        — Não me chame de Ur! — Ralhou ela, dando-lhe outro soco. Apontou em minha direção. — O que estava fazendo com a namorada do seu filho?
        — Ela estava me consolando devido às ações da Aries! — Explicou raivoso.
        — Não envolva outras pessoas em seus problemas, idiota! — Enervou-se ainda mais.
        — Mas eu também estava achando uma maneira de...
        — Não me interessa! — Cortou. Virou-se para mim. — E então, Lucy? Está se divertindo?
        — E-eu... — Engoli em seco. Estava até ir para aquele maldito corredor! — Estou. A festa está maravilhosa.
        Ultear me encarou. Em um ato imediato forcei um sorriso.
        — Fico feliz que esteja gostando. — Respondeu.
        — Não, Ur. — Interrompeu Igneel. — Tenho certeza que o melhor para a Lu-pyon agora será ir para a mansão.
        — Não me chame de Ur! E por que acha isso?
        O rosado olhava um ponto atrás de mim. Virei-me e percebi que Aries nos encarava de maneira assustadora.
        — É melhor eu ir embora mesmo. — Observei, fazendo uma expressão de dor. — Não me sinto muito bem...
        — Deve ter sido toda a chatice do Igneel...
        — Ei! — Irritou-se o mais velho.
        — Precisamos de alguém para te levar... — Lançou um olhar ao redor do salão.
        — Eu levo. — Meteu-se alguém.
        Era Gray.
        — Aí está nosso salvador! — Comemorou Igneel.
        O moreno deu um sorriso galanteador em minha direção.
        — Vamos nessa, princesa?
        — Não tem problema nenhum nisso, Gray? — Perguntou Ultear.
        — Não. — Respondeu simplesmente. — Já estava cogitando ir embora mesmo.
        — Já que é assim... — Cedeu.
        Pegou minha mão gentilmente e me conduziu até a entrada da mansão. Estava ventando muito... pelo visto iria chover mais tarde...
        — Está com frio? — Indagou o moreno, observando assim que um arrepio percorreu-me, enquanto esperávamos o manobrista trazer um dos carros da garagem. Como membro da máfia Dragneel e ser próximo da família principal, Gray tem permissão para certas coisas que outros não tem.
        — Er... Um pouco. — Admiti. Por que conseguia contar a Gray tudo tão facilmente? Fora assim depois do incidente com Sting também.
        Retirou seu casaco e o descansou sobre meus ombros. O sorriso não sumia do seus lábios de jeito nenhum.
        — O-obrigada. — Agradeci, sentindo minhas bochechas arderem fortemente. Puxei o casaco um pouco mais para cima.
        Arregalou os olhos e virou-se para o outro lado, afagando minha cabeça.
        — Não foi nada.
        Senti-me enjoada ao perceber que este ato dele fora igual ao de Natsu quando estávamos nas montanhas Sakura.
        Finalmente o carro chegou. Era uma ferrari branca bem confortável.
        — Ei... Lucy... — Começou, após algum tempo em que deslizávamos pela estrada escura. Apenas as luzes da ferrari iluminavam o pequeno trecho à frente.
        — O que foi? — Indaguei, sem deixar meus olhos saírem da estrada.
        — Sobre o que o Natsu disse... — Suspirei.
        — Não é um assunto muito bom para se conversar o momento. — Cortei, controlando minha raiva.
        Suspirou.
        — Se não for agora, quando será?
        Calei-me.
         — Tem razão. — Concordei. — O que tem?
        — Sinto muito. — Desculpou-se.
        Virei-me para ele.
        — Por que está se desculpando? Não foi você que o obrigou a dizer aquilo.
        — Mas poderia tê-lo impedido. — Respondeu. — Ou pelo menos tentado. Dessa maneira você não sairia machucada.
        Encarei-lhe, corando. Recostei-me no banco, observando o trecho claro da estrada a frente.
        — Não foi culpa sua. — Sussurrei. — E foi bom não tê-lo feito. Agora vejo como o Natsu me imaginou todo esse tempo. Não é algo que me deixe feliz, no entanto é algo que me deixa aliviada.
        — Você não se sente... Sei lá! ... Suja? Você foi usada dessa maneira o tempo todo...
        — Não. Não me sinto suja nem algo do tipo. Como disse, me deixa aliviada. Além disso, mesmo que tenha sido "usada", conheci pessoas maravilhosas que sei que posso começar a confiar. Como a Aries, a Erza, Mira, Lisanna, Elfman, Ultear, Igneel e... você.
        O carro desviou-se um pouco do trajeto.
        — E-eu?! — Exclamou surpreso.
        — Claro! — Sorri. — Veja como me animou depois daquele "lance" com o Sting, ou então o quanto está se mostrando preocupado por causa do estúpido do Natsu... Obrigada por se preocupar, Gray.
        Sorrimos um para o outro, sendo interrompidos por uma buzina de caminhão. Finalmente estávamos na avenida. Vamos lá... Vocês sabem como é rápido chegar à mansão Dragneel depois disso.
        — A propósito, Gray... — Uma coisa me perturbava há algum tempo.
        — Hum? — Balbuciou, estacionando a ferrari.
        — Aconteceu algo entre você e a Juvia?
        — Nada muito importante. — Soltou seu cinto, sendo seguido por mim. — Apenas terminamos nosso namoro.
        — Eu diria que isso é algo importante! — Observei. Por que ele parecia tão desinteressado?
        Riu.
        — Deveria ser, não é mesmo? Porém... Juvia estava me deixando louco ultimamente. Mais um pouco e ela terá que ir presa.
        — Eh?! — Assustei-me. — Co-como assim?
        — Ela está muito... obsessiva. Sim, esta é a palavra correta. Não posso nem mais respirar perto de uma garota que ela enlouquece. Na nossa última missão ela até...
        Virou-se para encarar-me.
        — Hum?
        — Não é nada. — Fez segredo. — É melhor você não saber.
        — Foi algo tão terrível assim? — Indaguei, enquanto andávamos pelos corredores vazios da mansão. Nossos passos ecoavam, era realmente estranho. Mesmo sem os donos, a mansão não tinha criados e empregadas trabalhando sem parar? Onde estava Virgo? Meredy?
        — Sim... — Cedeu, fechando os olhos por alguns instantes. — Sinto-me amedrontado só de lembrar.
        — Realmente é melhor eu não saber. — Concordei assustada.
        Chegamos a porta de meu quarto.
        — Bem... É isso. Foi um prazer contar com sua presença essa noite, mademoiselle. — Brincou.
        Sorri.
        — Digo o mesmo, caro e gentil bom moço. — Observei-o beijar minha mão em um gesto teatral.
        — É realmente uma pena não ter tido uma chance de dançar com você. — Lamuriou-se.
        — Na próxima vez dançaremos, então.
        — Promete?
        — Claro. — Sorri para ele.
        — Vou cobrar, viu?
        Ri.
        — Tudo bem. — Acenei para ele, vendo-o partir pelo caminho que viemos e entrei em meu quarto.
        Recostei-me na porta fria de mogno e deslizei até o chão, dando um longo e cansado suspiro. Um brinquedo, hein? O que devo fazer? Acho que... comecei a gostar dele...
        Segurei minha cabeça com as mãos, encostando minha testa nos joelhos dobrados.
        ... Gostar?
        Eu gosto... do Natsu?
        Suspirei, desistindo. Mesmo que tivesse desenvolvido esse tipo de sentimento por ele, agora era tarde. Levantei-me do chão e fui até a cômoda, pegando meu celular que deixara ali anteriormente. Tinha dito a Igneel que o faria, então...
        Disquei o número tão conhecido por mim pela primeira vez desde que chegara em Magnolia. Realmente... fui uma pessoa terrível por não tê-lo feito antes.
        Um bipe... Dois bipes... No terceiro, fui finalmente atendida.
        — Alô?
        Involuntariamente meus olhos encheram-se. Senti mais falta dele do que imaginara.
        — Alô... Papai, sou eu, Lucy. — Especifiquei.
        Pude ouvir a respiração entrecortada dele do outro lado. Estava surpreso, com toda certeza.
        — Lucy... — Balbuciou, não podendo conter a felicidade e alívio em sua voz. — Você está bem? Como estão as coisas por aí? Levy já chegou? Por que não telefonou antes? Voltará logo? Aquele dia está chegando...
        Ri. Em seguida, me senti a pior pessoa do mundo. Papai devia estar louco de preocupação comigo, e nem me dera ao trabalho de telefonar-lhe! Que péssima filha eu sou!
        — Estou ótima, papai. — Confortei-lhe, indo até a sacada e observando o céu estrelado. — Está tudo bem... Na verdade, aconteceram alguns imprevistos, mas consegui resolver a grande maioria. Sim, Levy já está aqui a um bom tempo. Ela me surpreendeu!
        Ouvi-o rir do outro lado da linha.
        — Ela conseguiu mesmo pegar-lhe de surpresa! Pensei que falharia, uma vez que você é toda apegada a esses detalhes e afins.
        — Pois é... — Concordei, lembrando-me quando prestava atenção em todos os detalhes a minha volta. — Realmente não percebi nada... Ah! Peço desculpas por não ter ligado antes, estava bem... ocupada...
        Senti-me um lixo por mentir para ele daquela forma.
        Ele suspirou.
        — Está tudo bem, raiozinho. Deve concentrar-se em seus estudos. Eu entendo. Aliás, fiquei muito feliz com os boletins que enviou-me recentemente. Suas notas estão incríveis! Como esperado de uma Heartfilia!
        — Mas eu não... — Surpreendi-me. Não havia lhe enviado nada! Será que... fora Igneel? Ele estava por dentro de tudo o que acontecia, então talvez... apertei meu punho fechado em meu peito, agradecida. Igneel estava se saindo um salvador e tanto! — Fico feliz que tenha gostado. Irei esforçar-me cada vez mais! Sobre...aquele dia... talvez eu... não consiga chegar a tempo... — Lamentei.
        — Entendo... Bem, ficarei na expectativa. — Ouvi-o bocejar.
        — Está com sono? — Indaguei, arqueando uma sobrancelha.
        — Não. É só o cansaço... você sabe... negócios, fazenda... Não está sendo fácil administrar isso tudo com a preocupação sobre você. Ou melhor, não estava. Agora que ligou, sinto-me aliviado.
        Sorri.
        — Não precisa fazer-se de durão, papai. Entendo muito bem que em parte, esse bocejo foi de cansaço, porém grande parte foi sono.
        Riu novamente.
        — Touché! Me conhece melhor do que imaginava!
        — Sou sua filha. É o mínimo que devo saber. Agora é melhor ir dormir. — Aconselhei.
        Ele gargalhou de forma baixa.
        — Certo, certo... Você também, mocinha.
        — Claro! Bons sonhos, papai.
        — Bons sonhos... Lucy.
        Desligamos.
        Apoiei-me na sacada e observei o céu.
        Já que tinha feito uma ligação para papai, por que não ligar para ele também? Aposto que a voz dele iria acalmar-me, além de me ajudar a entender esse turbilhão de coisas que estou sentindo.
        Disquei o número que anteriormente era o mais importante para mim, trêmula. Fora tão estúpida... Ele era a pessoa mais importante para mim! Como pude nem ao menos liga para essa pessoa?
        Por alguns segundos deixei-me vagar por uma de minhas muitas memórias com ele.

Meu Estranho MafiosoOnde histórias criam vida. Descubra agora