Gustavo
Véspera de Natal e amanheceu com um lindo dia de sol!
Lembro dos natais que passei com ela. Ficou apenas a sensação de seu amor. Éramos apenas nós dois e não havia muito dinheiro para fazermos uma ceia. Os poucos presentes que ganhei eram sempre dados por crianças que não os queriam mais.
Com minha mãe ao meu lado, isso não era problema.
Precisava apenas dela. Lembro-me dela me abraçar com força e eu me aninhar em seus braços.
No orfanato, o Dia do Natal era comemorado depois do almoço. Sempre havia uma festa, com muitas brincadeiras e um lanche diferente dos outros dias. Nós nos reuníamos no pátio para esperar o "Papai Noel" e seus ajudantes, que traziam doces e presentes. Ninguém ficava sem presentes. Mesmo os mais velhos, que ganhavam roupas. Mas, para mim, faltava aquele "algo a mais" que a família sempre traz.
Hoje é diferente. Estou na casa de praia de meus avós paternos, que ficará cheia até o fim da tarde.
Estou fazendo companhia à Vó Beca, meus irmãos e primos. Minha meia-irmã Clara está menos arredia comigo. (...)
A culpa de meus pais não ficarem juntos não foi culpa dela. Nem de sua mãe, Giovana. A culpa foi de meu pai, mesmo, que não aguentou o repuxo de uma gravidez inesperada e nos deixou sozinhos.
Meus pais se conheceram quando eram adolescentes. Minha mãe ficou grávida, e meu pai, com medo. Giovana apareceu na vida de meu pai tempos depois de ele ter saído da nossa.
Meu pai agora aceita bem minha presença. E eu estou aprendendo a gostar dele. Tento entender o que ele sentiu. Provavelmente eu sentiria o mesmo pânico.
Desci a escada e ouvi as crianças brincando na cozinha, onde tomamos o café-da-manhã. Lá encontrei a Vó Beca, que veio em minha direção, e minha tia Natália.
Dou um abraço apertado em minha avó, que apesar do pouco tempo de convívio, já se tornou mais que especial para mim. Ela e meu avô Luís fizeram eu me sentir parte desta família.
Não tenho mais a sensação que tudo isso pode desaparecer a qualquer instante. E, depois destes quase três meses de convivência, consigo me sentir à vontade perto desta família. A sensação de ser um "estranho no ninho" está desaparecendo.
Tia Natália ainda me olhava desconfiada, mesmo com o exame de DNA confirmando que sou filho de Carlos.
No orfanato aprendi a ser quem eu sou: sério, desconfiado, às vezes meio rude, também (Ok! Bem rude em alguns momentos...). Era uma forma de sobreviver ao sentimento de abandono que sentia.
Ainda parado na porta da cozinha, olhei a tia Natália servindo o lanche para suas filhas e sobrinhos. Sorri para ela. Um sorriso tímido, mas verdadeiro. Vi ela relaxar seus ombros e me convidou a juntar-se a eles para o lanche.
Atravessei o espaço entre eu e a tia Natália, aproximando-me com cuidado e parei de frente para ela sem dizer uma palavra. Quando ela se virou para falar comigo, eu a abracei pela cintura e encosto minha cabeça em seu ombro, como ainda se fosse um menino.
Com toda certeza, tia Natália não esperava por um abraço meu, pois ficou sem reação por um momento, até que senti seus braços ao meu redor e uma mão acariciar meus cabelos. Senti a muralha que havia entre nós derreter por conta do calor daquele abraço. O Natal tem, mesmo, este poder, não?
Natália se soltou delicadamente do abraço, segurou as minhas mãos entre as suas, olhou para mim com um sorriso doce e me disse: "você é mais parecido com o seu pai do que imagina, Gustavo. E não digo apenas na aparência. Deixe-o se aproximar e você verá. Faz um favor para si mesmo: permita-se esta aproximação e você não irá se arrepender."
Fiquei parado por uns instantes pensando em suas palavras. Eu e Carlos temos muito que acertar. São anos de rejeição que não se resolverão de um dia para o outro. Mas, a tia Natália estava certa. É preciso que nós dois se permitam e aceitem a aproximação. Só assim para nos conhecermos.
Até o final da tarde, a casa estava cheia, com os quatro filhos de meu avô (meu pai e meus tios... Ainda não me acostumei com isso...), e suas famílias.
A ceia de comemoração do Natal será à noite e na tradição dos Beneditte, os presentes serão entregues na manhã de Natal. Afinal de contas, o Papai Noel precisa "entregar" os presentes antes, não?
É quase noite quando desço do quarto, pronto para a ceia, não há ninguém na sala naquele momento e resolvo continuar lendo um dos livros que ganhei da vó Beca: "Harry Potter e a Pedra Filosofal".
Clara aparece na sala, também, e caminha pela sala me olhando desconfiada. Senta-se no sofá em frente à poltrona onde estou.
"Esta cadeira aí é do MEU avô Luís!" Disse ela ríspida. "Ah, não sabia.... Quando ele chegar, eu me levanto." Respondo calmamente para ela. Acho que ela queria brigar comigo, pois me pareceu desconsertada com minha resposta.
Ela passa a mão em seu vestido arrumando-o. Parece nervosa. Não sei se é por minha presença. Estes dias aqui na praia me ajudaram a me aproximar de meus irmãos e principalmente, com Clara.
Vó Beca disse que Clara estava numa fase rebelde, querendo provar ao mundo que tem opinião e isso estava refletido em suas roupas e maquiagem. Olhos bem marcados com uma maquiagem escura e o vestido preto e roxo, com uma espécie de tule por baixo do tecido (nunca vou entender as mulheres...). Em seus pés, um coturno preto. E o castanho claro de seus cabelos tinha saído de cena para entrar um laranja vivo.
Clara percebe que estou olhando para ela. "O que foi? Não gostou?" Pergunta-me inesperadamente. Ela me pega de surpresa. "Gostei, sim. Você está muito bonita, irmã." Respondo sorrindo e vejo um tímido sorrido ganhar cor em seu rosto. Ela abaixa a cabeça e coloca para trás da orelha uma mecha de seu cabelo. Então ela levanta do sofá onde estava sentada, caminha até onde estou e senta perto de mim. Pergunta sobre o livro que estou lendo.
Ao saber que estou lendo o primeiro volume do "Harry Potter", diz que já leu os outros, e que poderia me emprestar.
Quando vó Beca e Carlos chegam na sala, encontram eu e Clara rindo e conversando sobre livros. Vó Beca logo se junta a nós. Carlos fica mais atrás nos olhando. "Venha, papai", chama Clara. "Gustavo gosta de ler, assim como eu!"
"É verdade, Gustavo?" Confirmo com a cabeça e Carlos sorri para mim.
Sem esperar, ganho um abraço carinhoso e apertado de Clara. Aproveito o máximo possível.
Acho que ganhei um presente neste Natal.
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O Órfão
General FictionGustavo é um garoto que morou no orfanato de seus cinco anos até os 18 anos. E agora descobriu que tem um pai e uma família completa. Mas adaptar-se a esta família não será tão fácil.