A parte boa em viver a filosofia que o mundo hippie pregava era o fato de carregar consigo apenas coisas essenciais à vida e deixar que a natureza provesse o resto. Logo, a bagagem dos meus pais consistia em poucas sacolas e mochilas. Olhando para os dois, completamente envolvidos com o projeto Richwood, você pensaria que eram dois adolescentes saindo "mochilando" pelo mundo. Mas eram meus pais, porra. Eu estava sentada à mesa da cozinha, tentando fazer o cereal matinal descer a pulso. Desde o dia em que eles nos avisaram de seus planos já haviam se passado mais de duas semanas e os dois estavam ansiosos em partir para o tal festival. Meu coração estava magoado, mas eu não daria o braço a torcer e tentava conter os impulsos de me enrolar em uma bola e chorar loucamente. Ao longo daquelas semanas, tentamos manter nossa rotina de ir à escola, como se nada estivesse acontecendo, nem sequer demonstrando para os colegas ou professores que a rotina familiar estaria alterada dentro em breve. Outra coisa que precisaríamos fazer era reeducar a rotina com os vizinhos. O senso de normalidade deveria imperar, dando a impressão de que uma família unida e muito feliz ainda coabitava naquela casa. O que acontece com famílias hippies: se vivem em comunidades, acabam se adaptando bem às regras e normas sociais, já que as leis que seguem são guiadas por padrões diferentes. Como funcionaria, então, o conselho tutelar no caso de três adolescentes soltos no sistema? O sistema não precisaria saber desse detalhe. Se estivéssemos dentro de uma comunidade hippie, estaríamos totalmente protegidos, mas como estávamos fora, nós precisaríamos fazer um esquema um pouco mais camuflado para burlar certos protocolos. Como em dois meses eu faria dezoito anos, seria legalmente responsável pelos meus irmãos. Então, para evitar problemas, no decorrer desses meses meus pais resolveram deixar documentos preparados de emancipação precoce, para o caso de uma possível "merda futura". Não que fosse rolar algo, já que eles estariam apenas em outro estado, então não é como se fôssemos órfãos ou algo assim, mas os documentos os protegeriam de "abandono de incapazes". Era algo mais para protegê-los do que a nós mesmos, se fôssemos avaliar. Mas enfim... Pelo menos eles pensaram nessa hipótese. Seria aterrador nos deparar com a possibilidade de sermos separados e jogados no sistema, ou ver meus irmãos em lares adotivos enquanto meus pais correriam para casa para cuidar da merda em que se meteram. Espera. Da merda em que nos meteram. - Eu consegui fazer um monte de congelados para vocês. Está tudo na geladeira - minha mãe falou, olhando diretamente para mim. - Seu pai também fez compras de alguns mantimentos, mas deixamos uma quantia a mais para que vocês comprem o que gostam, já que nós não gostamos de comprar coisas industrializadas para você e seus irmãos - ela disse e olhou com repugnância para minha tigela de cereal. Apenas sacudi a cabeça em concordância. Minha garganta estava fechada. Sunny entrou naquele - Corta o assunto, mãe - falei revoltada. Levantei de onde estava sentada, lavei a vasilha na pia e coloquei no escorredor, enquanto minha mãe apenas esfregava uma mão na outra. - A gente já entendeu onde o coração de vocês dois está, então, estamos sendo muito dignos em aceitar esse abandono. Okay, talvez eu estivesse sendo um pouco dramática demais, mas era bom soltar os sentimentos de vez em quando. - Rain - minha mãe falou quase chorando. - Não estamos abandonando vocês. - Não? - Meu tom era ríspido. momento na cozinha, esfregando os olhos na tentativa de disfarçar as lágrimas que queria derramar. - Seu pai e eu estamos muito orgulhosos de vocês. Tão corajosos e... - Essa viagem de conhecimento de vocês vai durar quanto tempo? Hein? Por um acaso pararam para pensar em minha formatura? Ou como poderei seguir para uma faculdade deixando meus irmãos aqui sozinhos sem vocês? Minha mãe colocou a mão na boca e soluçou. Meu pai entrou naquele instante pela porta dos fundos. Quando olhou o estado da minha mãe, ele apenas suspirou e olhou para mim. - Você não poderia pegar leve, não é? - indagou com raiva. - Não, pai. Desculpa se magoei os sentimentos da mamãe tentando expressar os meus - falei com lágrimas nos olhos. -Eu vou me despedir agora porque não quero estar aqui quando partirem para esta jornada. Sinto muito. Mas só quero que saibam que vou sentir falta de vocês. Independente de qualquer coisa. Cheguei em minha mãe e a abracei fortemente, contendo a dor em meu coração. Beijei seu rosto e disse: - Eu te amo, mãe. O mesmo fiz com meu pai. Ambos estavam mudos diante da minha atitude. Sunny chorava baixinho com o rosto afundado entre os braços na mesa da cozinha. Storm estava apoiado no batente da porta.- Eu vou para a escola e, quando chegar, vamos montar toda a configuração de como será daqui por diante, okay? - falei para os meus irmãos. Sunny não se levantou, o que indicava que ou ela mataria aula para ficar em casa e ver meus pais partindo, ou arranjaria carona com alguma amiga. Storm veio atrás de mim e falou: - Posso ir com você hoje? Acenei minha cabeça em concordância e seguimos para o carro. Eu sabia que meu irmão estava tentando lidar da melhor forma possível e sem demonstrar que também estava se sentindo ferido.Minha vontade naquele instante era me recolher no quarto e chorar toda a angústia que sentia no peito. Ou então fazer o impensável e simplesmente abraçar meu irmão, tentando mostrar que tudo ficaria bem. Que nós três passaríamos por aquele momento sem nos quebrarmos. Quem sabe aquilo até nos fizesse mais fortes e preparados para o que a vida tinha a nos oferecer no futuro, não é? Assim eu esperava. Quando chegamos à escola, Storm desceu do carro e me esperou chegar ao seu lado. Ele fez o que eu não imaginava que faria. Beijou meu rosto e colocou o braço forte em meus ombros.- Tenho orgulho em ter você como irmã, Rainbow - ele disse enquanto caminhávamos pelo gramado até a entrada. Sorri sem vontade porque eu sabia que meus irmãos me colocaram no posto de heroína quando resolvi enfrentar nossos pais na questão da mudança. Eu havia lhes dado um pouco de voz em manifestar que também não estavam felizes. Então o fato de nos mantermos ali naquela cidade, naquela escola, rodeados por aqueles amigos que fizemos recentemente, estava deixando os dois orgulhosos de algo do qual eu sentia muito medo. Como faríamos se um de nós três adoecesse? Era meu pensamento constante. Comida, roupa lavada, afazeres domésticos? Teríamos de apenas readaptar, já que sempre participamos ativamente das tarefas de casa. Dei um beijo em meu irmão e cada um tomou seu caminho. Entrei na sala de aula, mas o que eu mais queria naquele momento era um par de braços fortes que me abraçasse e me consolasse da dor inimaginável que eu estava sentindo. Pode me chamar de fraca ou do que quiser. Agora eu entendia as músicas melosas e românticas.A necessidade que as pessoas sentem da pessoa amada ao lado. Espera... pessoa amada... pessoa amada? Eu amava Thomas Reynard? Em todo aquele conflito acontecendo na minha vida, ainda teria capacidade para reconhecer o sentimento de maneira correta sem confundir necessidade vital com qualquer outra coisa?
VOCÊ ESTÁ LENDO
Rainbow
Teen FictionRainbow" Walker sempre se sentiu diferente das garotas da sua idade. Com um nome peculiar e uma família estranha, ela nunca conseguiu estabelecer vínculos ou manter muitas amizades. Agora, em uma nova cidade, ela terá de se adaptar a uma nova escola...