Amaldiçoada

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Não sei como me mantenho de pé, nesse momento. Como não desabei quando percebi, nos olhares dos dois, que tem algo tão grave acontecendo aqui que pode acabar comigo.

Ícaro suspira, senta. Coloca a mão na testa, acompanhando a pequena ruga de stress entre as sobrancelhas. Trevor dá um passo em minha direção. Eu recuo.

- Chega de mentir. – Eu digo, fria. Ele parece se machucar, me estende a mão.

- Então, é agora. – Ele diz. Eu seguro em sua mão, me sento. Não consigo olhá-los, só consigo fitar a pequena fotografia polaroid nas minhas mãos. É silencioso, a tensão no ar, apenas o barulho da respiração ansiosa.

- Quando você chegou aqui hoje... - Ele me olha profundamente. - Me fez pensar que ainda há esperança. - Essa Serenity... - Ele começa a dizer. - Eu conheci ela... anos atrás. É você, você de outra vida.

- Como assim? – Minha voz acaba saindo mais alta do que o costume. – Isso não existe!

- Bruxaria também não. – Escuto a voz de Ícaro soar deprimente, ao nosso lado. – Nem magia, criaturas de livros, fogo surgindo dos dedos...

- Ícaro. – Trevor corta ele. Eu estou surtando. – Precisa acreditar em mim. – Trevor diz me olhando confiante. Não consigo fita-lo.

- Como poderia esconder algo assim...

- Eu faria mais um milhão de vezes, se fosse para te proteger. – Trevor responde. Eu me calo.

Meu coração parece relutar dentro do meu peito. Eu engasgo, sinto náuseas. Fico tremula olhando a foto. Parecemos um casal apaixonado, eu pareço infinitamente feliz. Ele me conheceu.

- Trevor. - Falo sem respirar direito. - Como...

Sua mão pousa delicadamente sobre a minha. Como se pudesse me quebrar. Ele abaixa a foto, me faz olhá-lo.

- Só peço que se acalme. – Ele diz. – Entenda que... É tudo por você. É difícil digerir.

Ícaro não nos olha. Está cabisbaixo, fitando um ponto no chão. Como se essa cena já acontecesse e eles sempre temessem a minha reação.

- Meu pai me odeia. – Trevor desabafa. - Bruxos sangue puro e humanos não podem ter filhos. Quando eu nasci... – Os olhos de Trevor marejam. – Eu menti para você. Eu tenho um pai, mas minha mãe morreu. Morreu por estar grávida de um sangue puro. Morreu para me dar a vida.

- Sua mãe? – Digo. – Como assim?

- Ela era tão humana quanto você. – Trevor diz. – E bem, quando tudo aconteceu, ele teria me matado.

- Mas meu pai impediu. – Ícaro fala secamente.

As peças se encaixam, por mais devagar que pareça.

Gostaria de abraça-lo, dizer que sinto muito, fazer a dor passar. Mas eu estou tão confusa, que não consigo fazer nada além de apertar suas mãos nervosas.

- Eu sei que meu pai está vivo, que ele é poderoso.

- Sebastian Sullivan. – Digo, motivando para que ele continue. As coisas que Ícaro me disse... São todas verdade. O perigo que esse lugar suporta, o medo...

- Sim. Ele me odeia, desde que eu existo. – Ele diz. – Eu matei a mulher que ele amava. E ele não poderia deixar isso assim.

O silêncio se estende. Um longo suspiro. Cada coisa que escuto ele contar sobre esse homem me faz sentir mais medo dele.

- Ele me amaldiçoou. – Trevor me olha nos olhos, marejados, doloridos. – Devo perder a mulher que eu amo, no dia em que eu nasci, para sempre. Devo sentir o mesmo que ele sentiu.

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