Surreal

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Ele me trata gentilmente, como se eu pudesse quebrar. Me guia. Eu confio cegamente em tudo que envolve Trevor Sullivan. 

- Está tudo bem? – Trevor diz. – Não parece.

- Ah, dia esquisito. – Eu olho para o céu nublado, as nuvens tapando os vestígios de luz que restam. – Pessoas estranhas, cidade estranha. Sabia que temos lendas de bruxaria?

Trevor suspira, passando o braço pelos meus ombros enquanto me conduz. O rosto delicado e pálido, a leve curvinha entre as sobrancelhas que ele faz quando fica preocupado.

- Como descobriu isso?

- Fui na biblioteca hoje cedo. Antes daquele problemão todo. – Respondo tensa, pela sua expressão. – Não sei se acredito nessas coisas. Mas eu gosto. É melhor do que lendas de garotas mortas na floresta, isso mexe um pouco comigo.

Ficamos em silêncio, e ele inquieto, olhando para o céu. Acho que ele não gosta de tocar nesse assunto, nem que eu seja curiosa.

- Srta. Wood. – Ele para bruscamente no caminho. Passa a mão pelo meu cabelo e nuca, onde pousa sua mão. Me olha no fundo dos olhos, urgentes e preocupados. Parece querer dizer algo.

Mas antes que ele tenha a oportunidade, sinto a água gelada cair sobre meu rosto. Chuva fina e gelada, constante.

- Trevor! Temor que ir! – Eu digo rindo, enquanto ele puxa a jaqueta marrom de seu corpo. – O que está fazendo?

Ele coloca a jaqueta sobre minha cabeça, me protegendo do frio e da chuva cortante que insiste em cair. Se aproxima devagar do meu rosto, beijando minha bochecha. O quente do seu hálito me provoca um arrepio, me fazendo sentir o rosto esquentar. Dou um sorriso, puxando ele pela mão o mais rápido que posso.

- Vem! – Eu grito, chamando-o. Nós rimos correndo na rua molhada, até dobrar a esquina da minha casa. Sua mão segura a minha firmemente, com proteção e afeto.

Sinto a euforia do momento preencher meu coração, só de olhá-lo sorrir enquanto fugimos da chuva gelada.

- Sereny. – A voz rouca dele ecoa, ele me guia até a parada de ônibus em frente à minha casa, me segura, passeia os dedos pelos meus cabelos negros, beija minha boca. Me beija urgentemente, molhado pela chuva. Eu fecho os olhos sentindo-o perto de mim.

- Ei... – Eu digo sorrindo, abro os olhos devagar. Ele puxa minha mão, beijando a mesma. Dou risada, ele de fato não parece ser desse mundo.

- Prometa que vai se cuidar. – Ele fala.

- Eu já cheguei em casa! – Digo e ele curva as sobrancelhas. Acho que não entendi ele. – Não precisa se preocupar.

- Isso se chama cuidar.

- Quer um guarda-chuva? Digo, não sei onde você mora, mas, posso te alcançar um. – Ele acena um não com a cabeça, os cabelos úmidos e caindo pelos olhos violeta.

- A gente se fala depois, Srta. Wood. – Ele me dá um beijo no rosto, se afastando para o lado oposto. Fico parada observando-o se distanciar em meio ao chuviscar delicado, quase imperceptível.

Quando abri a porta da frente, tia Leona estava sentada no sofá com um pote gigantesco de pipoca no colo, enquanto Loki dormia ao seu lado, nas almofadas bordô. Seus olhos inchados e vermelhos, ela nem me perceberia chegar.

- Tia! – Digo batendo os pés. – Aconteceu alguma coisa?

Ela faz um beiço.

- É esse filme desgraçado. – Sua voz soa chorosa. – Destruindo os meus sentimentos!

- Oras... – Eu começo a rir, passando por ela e pegando a pipoca no pote. Eu quase me preocupei atoa, quase! – Parece que todos estamos à flor da pele hoje.

Filmes românticos sofredores sempre foram os favoritos da minha tia e da minha mãe.

- E a mãe? – Pergunto parada na ponta da escada, pronta para subir e descansar em paz.

- Foi no mercado. – Ela me dá um sorriso. – Sozinha!

- Ah... – Eu fico aliviada. Sinto meu corpo inteiro relaxar. – Isso é demais, tia.

Nós sorrimos, eu encharcada da água gelada, minha tia encharcada de lágrimas. Sempre procurando um ponto de alívio em meio à tudo.

Eu subo, um banho quente. Meu celular tocando uma melodia calmante enquanto relaxo sentindo a água me limpar por completo.

A chuva está tão intensa que consigo ouvi-la bater violentamente nas telhas da casa. Me pergunto se Trevor conseguiu chegar à tempo.

Desligo o chuveiro. Coloco meu pijama velho, meu roupão, e saio do quarto disposta para me jogar na cama.

- Filha. – Eu me viro no corredor, minha mãe cheia de sacolas sorri docemente. Não posso evitar de me contagiar. – Preparada para o melhor jantar da sua vida?

Eu dou um pulinho, abraçando ela e fazendo-a derrubar as sacolas. Aperto ela o mais forte que eu posso, agradecendo por vê-la assim.

Meu quarto tem uma janela gigante, onde a cama fica encostada. Dela, consigo enxergar as árvores enormes de Forest Witchery, escurecidas pelo tempo. A chuva e o vento bagunçam as folhas no chão. Eu me sento na cama, abrindo minha mochila e pegando meu celular.

"Você chegou bem?"

Mando a mensagem para Trevor, e puxo o livro da mochila. Crônicas fantásticas sobre bruxaria.

- Fictício. – Dou uma bufada, folhando as páginas amareladas.

Estou tocando e lendo a imaginação de alguém, muito distante de mim. Alguém que já se sentiu por entre a mata cortante e feitiçarias, que depositou tudo aqui por algum motivo.

- Bestiário? – Isso até parece aqueles filmes que mais parecem uma espécie de RPG. – Trevor iria rir de mim, comigo lendo isso.

Bruxas, Goblins, Olhos-negros, chifres de bode crescendo do topo de seus crânios, e até mesmo sereias perigosamente sedutoras. O livro é desenhado à mão. Cuidadosamente descrevendo criaturas que desconheço ou não.

"Os feiticeiros que dão nome às regiões de Forest Witchery são os mais perigosos. Os mais temidos, que vivem milhares de anos, sem sequer sentir o tempo passar.

São amaldiçoados. São inconstantes.

Eles nunca morrem".

Quando começo a folhar adiante, as letras da página parecem sumir. Se embaralhando perante meus olhos, e desaparecendo.

Sinto o coração acelerando e toco o livro no chão o mais rápido que consigo.

Me esgueiro até a ponta de trás da cama. O coração saltando do peito, o livro se retorcendo no chão. Isso não é real. Não existe possibilidade nenhuma de ser real.

Um trovão me faz saltar da cama. Eu abro a janela o mais rápido que posso, e vou andando pela ponta da cama até o livro gigantesco que mais parece estar possuído na minha frente.

- Calminho, calminho... – Em um pulo, eu o agarro, tocando pela janela entreaberta. Eu fico olhando ele se chocar no chão, na poça suja de lama.

Fico parada sem sentir o tempo passar. O peito acelerado, a respiração entrecortada. O que diabos foi isso?

De longe, ouço minha mãe chamar por meu nome. A janta está pronta. E meu estômago embrulhado, pois, se não estou tendo alucinações, tem algo de muito errado acontecendo aqui. 

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Capítulo do dia!! Originalmente, esse capítulo nem existia na primeira versão que escrevi de Serenity. Mas vendo essa chuvinha de hoje, tive a ideia, e não pude deixar de escrevê-la aqui. O resultado me deixou muito feliz, e espero que gostem também!

Obrigada por ler :D

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