O sol sempre se esconde quando chegamos aqui. As árvores são gloriosas demais, tanto que não permitem que luz passe por elas. Nós caminhamos devagar após minha descoberta sobre o fogo que corre dentro de mim, ainda eufóricos e com vontade de mais.
Considerando que aqui é meu local mais temido, não estou tão assustada, a companhia de Ícaro me faz sentir menos vulnerável, ao mesmo tempo que meu coração dispara à cada som estranho em meio às folhagens.
- Tem um ritual. - Ícaro diz com a voz hesitante. - É mais rápido, para despertar você. Bem mais rápido. Eu estudei sobre ele algumas vezes, coisas em livros e meu antigo tutor já comentou sobre. Mas é doloroso.
Engulo em seco, ele franze as sobrancelhas, aparentemente incomodado de mencionar essa história.
- Doloroso. - Digo hesitante. - Aposto que não dói mais do que morrer aqui. - Digo como uma piada inocente. Ele me olha sério, acho que não sei mais como aliviar o clima.
- É quase como morrer. Só que pior. - Ícaro responde.
Eu dou um sorriso nervoso. Aposto que Trevor não é a favor desse tipo de ritual. Porque bruxos insistem em criar coisas terríveis em prol de poder? Digo... Se todos simplesmente vivessem em suas cabanas, sem amaldiçoar os filhos, cidades, povoados, a vida não seria bem mais fácil?
Claro que seria. Mas humanos também são assim. Fazer o mal para favorecer à seus próprios desejos sempre será aceito.
- Como é esse ritual?
- Você iria dormir. - ele responde - Mas iria sentir tudo que já sentiu nas suas outras vidas. Ia vivenciar cada parte delas, a dor, a alegria, o medo... Ia reunir as partes das Serenitys perdidas no tempo, dentro de você.
Eu respiro fundo. Eu ia lembrar de tudo. A melhor parte até a pior parte. Até morrer diversas vezes e ....
- Eu não sei se consigo fazer isso. - respondo nervosa.
- Não precisa se forçar a nada. - Ícaro se coloca na minha frente.
As árvores estão balançando com vento, violento e assobiando em nossos ouvidos. Coloco as mãos no peito, tentando acalmar meu coração, sem sucesso algum. Eu sei que o Ícaro consegue nos proteger. Não há o que temer.
- Agora é contigo. - ele responde. Na mesma velocidade em que uma sombra se arrasta com força por meio dos troncos. - Eu não vou atacá-lo.
- O QUE?!
- Foco, Serenity. - ele diz. - Se acalme. Você vai me salvar agora. Eu só vou ficar na sua frente. Vamos.
A criatura deve ter uns três metros. Eu não consigo vê-la por completo. A mão comprida com unhas longas e sujas de vermelho se agarra na arvore, fazendo o tronco despedaçar. Eu consigo escutar meu coração pulsando, querendo pular da minha boca.
- E-ele vai nos matar.... - Eu começo a sentir lágrimas nos olhos - Ícaro por fa-favor...
- Não.
- Ícaro.... - A criatura abre a boca. Maior que minha cabeça. Os chifres de bode, o pelo preto escuro e sujo de sangue. Ele grita tão intenso quanto um urso furioso. E corre em nossa direção, eu não consigo me mexer e Ícaro permanece parado diante de mim. - ÍCARO!
O fogo. Se lembre do fogo! Apenas se concentre em proteger o Ícaro, sua bruxa inútil!
Eu sinto meu peito queimar, em brasas! O desespero, o medo de ver sangue diante de mim, do Ícaro se ferir para me ajudar em vão.
Fecho os olhos o som do animal rasga meus tímpanos, uma dor, um som que nunca ouvi antes. O vento joga meu cabelo para trás e me faz firmar os pés no chão. Eu estendo as mãos. Não sinto mais a presença de Ícaro. Não enxergo nada.
Sinto os dedos queimarem.
Queime, queime tudo. Me tire daqui. Seja forte, seja corajosa, seja útil.
- Incrivel! Continue, garota! - Ícaro grita em meio a ventania. Eu abro os olhos, e fico surpresa com o que vejo. Eu fiz o vento parar.
Eu transformei o vento e a força dessa criatura em chamas. O pelo preto dele carbonizado, e o sangue pulsando pelos olhos brancos opacos.
Ícaro saiu da minha frente, e ao meu lado, coloca as mãos nos meus ombros.
- Pode parar agora. - ele sorri calorosamente para mim. - Você conseguiu. Estou orgulhoso, tão orgulhoso! Empolgado! Isso é maravilhoso!
Eu paro de fazer força. De suar frio. Olho para o chão, o corpo derrotado e carbonizado, a clara e pura derrota da floresta maldita.
Sinto meus olhos encherem de lágrimas.
- Me desculpe. - Ícaro diz. - Eu sei que peguei pesado.
- Sim! Muito. - digo querendo chorar mas tendo engolir com todas as minhas forças. - Mas... Obrigado.
Eu não consigo acreditar que eu consegui fazer isso. Eu!
Eu posso ajudar eles. Isso não tem preço. Eu não sou um peso morto, não quero ser.
Ele me puxa pelas pernas, me colocando nas costas.
- Ei. Que foi?! - Grito assustada. Ele começa a correr o mais rápido possivel, rindo de um jeito debochado.
- Vamos correr, antes que venham mais. Não precisamos desse tipo de problema agora! - ele exclama a voz entrecortada pelo esforço de me carregar e correr ao mesmo tempo. - Venham, bichos nojentos! - ele exclama rindo.
Ele nunca vai mudar, mesmo. Não importa a situação ele não sabe quando parar. Mas acho que eu gosto disso no Ícaro. Torna ele especial, de algum jeito.
- Eu ... - falo. - posso correr sozinha.
- Mas não tão rápido assim. - ele grita , e escuto o som dos passos atrás de nós. Se esgueirando em meio às árvores, ele faz um movimento com as mãos e atira como uma pistola na direção deles. - Há! Na mosca.
Reviro os olhos. Ele salta, em meio às folhas secas, se escondendo com destreza.
- Respire devagar. Vão nos farejar. E quando nos encontrarem, vou explodir eles. - Ícaro fala sorrindo. Estou tão perto que posso sentir sua respiração e o cheiro do perfume cítrico. Fico levemente corada com isso mas viro a cabeça, para tentar ver de onde eles virão.
Passos pesados vão ficando cada vez mais difíceis de ouvir. Estão nos procurando cautelosamente e quando encontrarem, surpresa.
Estamos aqui. E nós vamos matar vocês.
Ícaro se ergue rapidamente. Três ou quatro deles vem em nossa direção com os olhos totalmente focados naquele branco opaco assustador. Os dentes à mostra e o cheiro da sede de sangue.
Ele ergue os dedos formando um tiro novamente. Sorrindo confiante, suas mãos emanam uma luz tão forte que me faz arder os olhos. Ele é muito forte.
Muito mágico, muito poderoso.
- Bum. - ele sorri. A luz atravessa as criaturas. Um a um. Caindo, cheiro de carne podre, sangue e destruição. O silêncio.
O jeito que eles acabaram como se não fossem nada. Ele se vira para mim, com uma expressão aliviada.
- Deu tudo certo. - ele fala suspirando.
Fico pensando em toda a segurança que ele me passou agora. Em como ele poderia ajudar tantas pessoas com esse poder. E se eu tenho algo maior que isso dentro de mim, nas minhas veias, quantas coisas fantásticas eu poderia fazer?
O medo me limita.
A falta de coragem me diminui.
Ícaro. Trevor. Eu preciso tentar. Preciso me esforçar mais.
- Ícaro... - falo cabisbaixa, ele me olha curioso. - Quero tentar o ritual.
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Pessoal. Após um ano sem postar, acabei vindo aqui aleatoriamente e escrevendo algo. Foi muito bom. Me senti dentro da história novamente... E é isto. Nesse um ano longe daqui, aconteceram muitas coisas, muitos problemas, e também agora sou uma "adulta empregada" o que me limitou muito de escrever e isso me deixa bastante chateada. É difícil sonhar tão alto algumas vezes, e por um tempo perdi minha "magia". A Serenity expressa muitos sentimentos meus e foi ótimo trazer ela aqui hoje. Obrigada por lerem !

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Serenity
FantasySe dependesse de mim, tudo seria mais simples e sereno. Eu gostaria de fechar os olhos, bater as asas como uma borboleta e fugir de toda bagunça. Mas eu decidi ir até ele. Se serenidade fosse realmente meu dom, eu não estaria tão ansiosa para descob...