dezenove.

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Estava deitada na cama a encarar fixamente a porta da casa de banho a alguns passos de distância de mim. As lágrimas já haviam secado, a minha garganta estava seca e era como se um abismo tivesse sido criado dentro da minha barriga por conta da fome, todavia mesmo se fosse oferecida água ou até mesmo comida recusaria. Não que julgasse uma boa ideia morrer de fome e sede, mas não queria ingerir nada que fosse deles.

Levantei o olhar para encarar a porta quando escutei um movimento. Greta apareceu no meu campo de visão com uma roupa diferente. Parecia um pijama. Não fazia de que horas eram, mas já devia ser bem tarde.

— Está com fome? — perguntou, ainda parada na batente da porta e tive a leve impressão de que ela tinha um certo receio de se aproximar de mim. Não a culpava. O meu olhar agora deveria parecer mortal.

— Não — menti e ela percebeu.

— Olha, eu nunca concordei com tudo isso. Pode confiar em mim — apontou para ela mesma. — Não tenho a intenção de a envenenar ou algo do tipo.

Sem expressão alguma voltei o meu olhar para a porta da casa de banho, como se aquilo fosse a coisa mais interessante que as suas palavras. E de facto era.

— Você irá passar mais tempo aqui do que pensa e morrer de fome não será um dos melhores passatempos do mundo.

Ouvir aquilo foi como receber um tapa na cara. Senti o meu estômago embrulhar e um gosto amargo se formar na minha boca. Queria vomitar, mas não tinha nada para ser lançado.

Voltei os meus olhos para ela e murmurei.

— Eu não quero ficar aqui.

— Eu sei — me olhou com pesar.

— Então ajude-me a fugir.

Ela suspirou.

— Isso será uma tarefa impossível. Esse lugar tem mais seguranças que a casa branca e mesmo que conseguisse fugir para aonde iria? Porque iriam procurar você.

Essa era uma boa pergunta. O orfanato estava longe de ser um refúgio e ficar a andar sem rumo também não era uma boa opção.
Talvez a casa de Haydee, ela era grande o suficiente para eu ficar escondida num cómodo qualquer sem os seus pais notarem e tenho certeza de que ela não me negaria um abrigo.

Haydee. Hoje nós tínhamos que ter apresentado o trabalho de física e eu prometi a ela que não seria sequestrada, e aqui estou. Presa num lugar desconhecido e com pessoas desconhecidas.

— Ainda não respondeu a minha pergunta — mudou de assunto. — Está com fome?

— Já disse que não  — repliquei, um pouco rude. — É tão difícil entender isso?

— Eu só estou a tentar ser a parte  legal de tudo isso. Queria muito poder a ajudar, mas não posso — ela diz, já sem muita paciência. — Irei pedir a Jade para trazer o jantar para você e não se fala mais nisso.

— Ela pode trazer, mas não irei comer.

Ela riu, de forma sarcástica.

— O que o meu irmão viu em você? — aquela pergunta parecia mais para ela do que para mim.

— Se não for pedir muito — murmurei. — Quero ficar sozinha.

Ela revirou os olhos antes de fechar a porta com força e deixar-me sozinha.

Não me senti culpada pela forma como a tratei. Ela não entendia como era estar do meu lado. Como era ser mantida contra a sua vontade num lugar estranho. Eu nunca conseguiria ver o lado bom de ficar presa ali e nem me daria ao esforço de tentar.

Eu só queria voltar para o orfanato. Nunca pensei que ficaria com saudades daquele lugar. Apesar das regras sem sentido e muito rigorosas de certa forma havia se tornado a minha casa. Eu tinha o Keanu lá.

Não sei ao certo como me sentir em relação a ele. Eu pensava que o conhecia, mas a acabei descobrindo que não, porém isso não me faria ignorar os últimos anos que passámos juntos. Rindo, chorando e rindo de tudo novamente. Como irmãos e a acima de tudo família.

Limpei uma lágrima que deslizou pela minha bochecha. Chorar não mudaria nada. Só me faria sofrer mais ainda e ficar desidratada.

Um segundo movimento na porta fez-me revirar os olhos, cansada. Com certeza era a tal Jade e a sua comida com certeza envenenada que eu não iria comer. Nem que a passagem para entrar no céu seja comer algo aqui eu não iria aceitar. Cruzei os braços e fiz a minha melhor expressão séria, para a mandar de volta para o lugar de onde saiu quando Theron apareceu no meu campo de visão diferente da primeira vez que o vi nessas circunstâncias.

Ele usava uma camisa social levemente abarrotada e umas calças bege. Ele parecia novo demais para aquilo. Ele parecia novo demais para estar vestido como um homem de negócios.

Voltei a realidade quando ele se sentou na beira da cama. Não me movi do lugar onde estava. Se demonstrasse algum tipo de medo em relação a ele o mesmo usaria isso contra mim. Por isso usei todo o meu autocontrole para continuar imóvel e na minha.

— Como você está? — o canalha teve a audácia de perguntar. Conti a vontade de levantar da cama e apertar o seu pescoço com força até ele ficar sem ar e respondi:

— Como você acha? — não o dei tempo de responder. — Tô aqui presa contra a minha vontade. Como queria que eu estivesse? A vomitar arco-íris e unicórnios?

Ele não respondeu. O analisei em silêncio até abrir a boca novamente.

— O que você é? Algum mafioso? Traficante?

Ele sorriu para mim. E eu poderia considerar o seu sorriso bonito se ele não fosse o meu sequestrador. Toda a beleza que eu via nele antes de estar aqui havia sumido do seu rosto. Agora ele era feio. Horrível. Tanto por fora quanto por dentro. Um ser humano repugnante…

— Nenhuma dessas coisas — interrompeu o meu raciocínio.

— O que quer aqui? — indaguei, apática. — A sua presença deixa-me enjoada — adicionei.

Eu não o tipo de garota que falava esse tipo de coisa. Doía na minha alma ser tão… insensível com as pessoas mesmo que me tratassem mal, mas agora a situação é diferente. Eu posso insultar ele até o meu último suspiro e nunca sentir remorso.

— Porque não quer comer? — ignorou as minhas palavras. E eu também faria o mesmo.

— Vá embora — virei o meu rosto para o lado contrário. Estava a ser difícil respirar o mesmo ar que ele.

Ele não falou mais nada. Ficou  ali pelo que pareceram minutos, como se quisesse dizer-me alguma coisa. Quando finalmente tomou coragem falou:

— Expressei-me mal ontem — começou. — Tudo o que eu disse sobre se depender de mim não irá a lugar nenhum não é verdade porque você irá, um dia.

Não reagi. Essa declaração não mudará nada na minha vida porque quanto tempo falta para esse um dia. O que irá me acontecer até lá?

Ele tomou o meu silêncio como uma deixa para ir embora e eu pude finalmente respirar.

A Jade apareceu minutos depois. Ao contrário deles, ela não falou nada. Era como se soubesse que eu não estava a afim. Apenas deixou a comida em cima do criado mudo e foi embora.

Olhei para a comida mais tempo do que deveria e antes que caísse na tentação, deitei-me e fechei os olhos.

NeutroOnde histórias criam vida. Descubra agora