Foram trinta segundos. Trinta segundos entre o momento em que acelerou o carro quando o sinal verde se abriu até o momento em que ouviu um barulho alto, viu cacos de vidro voando pelo ar. Clarissa lembrava-se do sangue, sangue para todos os lados. Ele escorria de sua boca e também de filetes em seu braço, fazendo seu corpo inteiro latejar quando o líquido viscoso e morno escorreu em sua pele pálida.
Tentou gritar, tentou mover o corpo e tirar o cinto. Seu corpo estava esmagado contra o banco e camadas de metal retorcido, seus olhos lacrimejavam de dor enquanto não conseguia pedir ajuda, estava engasgada demais com o sangue em sua garganta. Por que, diabos, não conseguia mover as pernas para sair dali?
Sua visão estava borrada, não sabia dizer se por causa das lágrimas de dor ou do sangue que escorria do corte em sua testa, mas manchas negras surgiam ao seu redor e tudo pareceu distante.
De repente, não sentia mais dor e nem o sangue quente escorrendo, não sentia o frio da rua invadindo sua pele. Foi puxada para um abismo negro lentamente, fazendo tudo se apagar.
« ♡ »
As ondas batiam nas rochas e suas gotículas voavam pelo ar, cintilando ao refletir luz dourada do nascer do sol. A ruiva estava de costas para si, ainda não havia notado sua presença e Clarissa parou por alguns segundos, observando seus cabelos avermelhados que ondulavam no vento e pareciam uma maré de fogo.
Era estranho, deveria sentir o cheiro de maresia e sentir as gotículas de água batendo em sua pele, mas não sentia nada desde acordar no hospital. Nenhuma textura ou sensação, nem mesmo o cheiro de anticéptico típico do lugar. Havia ficado tempo o suficiente para ouvir o médico falando com seus pais no consultório, para ver a frágil garota loira na cama hospitalar, machucada e envolta de cânulas. Ela parecia pequena e impotente, como se não tivesse a menor chance.
A garota era ela.
E foi então que, no meio de todo o desespero, pensou em Elisa. Desejou com todas as forças estar ao seu lado, imaginou seus cabelos ruivos com toda sua luz dourada e agora estava atrás dela, o que fez Clarissa ofegar de forma espantada.
— Liz? — murmurou e isso fez com que Elisa se virasse, seus olhos dourados se arregalando em surpresa quando lhe viu. Clarissa sentiu-se extasiada, como sempre se sentia quando a via e os olhos dourados lhe encaravam, o cabelo ruivo familiar emoldurando seu rosto.
Sempre sentia uma tempestade dentro de si. Ainda lembrava-se de quando acordou com o toque do telefone e levantou-se da cama, esperando que fosse um dia normal. Foi quando ouviu a voz cansada de Sara, rouca e trêmula.
— Elisa está morta. — Mas não estava. Não exatamente.
Nem morta e nem viva, encarava a garota querubim em sua frente, ciente de que seu coração não mais batia, mas ela ainda era a menina sentimental que conhecera no colegial, com quem namorara por mais de um ano. E agora Elisa emanava poder e autoridade, com um ar nobre que a fazia querer se curvar diante dos olhos dourados e cabelos ruivos.
Clarissa sorriu fraco, olhando-a no fundo dos olhos dourados.
— Eu sei que tem certas coisas que você precisa entender sozinha, mas às vezes elas são melhores quando tem alguém ao seu lado. — A ruiva lhe encarava sem palavras, um misto de espanto e confusão contido em sua face hesitante e perdida. — Me leve com você — pediu, em alguns segundos de coragem. Se pudesse sentir o coração bater, podia jurar que ele estaria acelerado enquanto considerava o que estava prestes a acontecer.
Mas não podia recuar agora. Não quando sua pele era contornava por uma suave luminosidade branca e seus pés praticamente flutuavam sobre a pedra cheia de lodo na qual estava de pé, o que só confirmava sua condição de garota morta andando, espírito perdido. Fantasma.
— Cass, eu... — Elisa deixou a voz morrer na garganta e parecia relutante, tudo em sua expressão dizia o quanto não queria aquilo. Não queria vê-la morrer.
— Nós duas sabemos que eu não posso ficar. — Clarissa insistiu, seus olhos fixados na ruiva com certa expectativa. O céu se iluminava atrás delas, tons de dourado anunciavam os primeiros raios de sol do dia, iluminando a Golden Gate que cintilava no horizonte e tingindo as nuvens em um degradê de violeta e alaranjado. — Eu não sei o que acontece depois, mas, se eu estiver com você, então ficarei bem — complementou.
— Você tem certeza? — questionou a querubim, com os olhos dourados lhe encarando de forma aflita e Clarissa sentiu o sorriso vacilar, mas manteve-se firme. Não era como se tivesse escolha, afinal.
— Nunca estive tão certa — respondeu, por fim. O vento soprou forte e Elisa sorriu fraco, as duas entrelaçaram as mãos quando a ruiva a puxou para mais perto.
Elisa cintilava em dourado, como se conseguisse sugar a luz do nascer do sol atrás de si. A abraçou com força, sentindo um bolo de sentimentos se formando quando a luz dourada se intensificou e as engoliu como uma redoma.
Clarissa viu os cabelos ruivos balançando ao vento, o céu pintando-se de azul-claro no horizonte e os faróis de carro cintilando na Golden Gate, erguendo-se na frente das altas montanhas que formavam um oceano verde dentre as nuvens. Silenciosamente, despediu-se da Califórnia e de San Francisco, despediu-se da vida que conhecia para encarar algo assustador e aterrorizante.
Elisa abraçou-lhe mais forte, como se sentisse seu súbito desespero e Clarissa sentiu uma dose de alívio. Se ela estivesse ao seu lado, tudo ficaria bem e foi com esse pensamento que deixou a luz dourada lhe engolir, fazendo com que a paisagem sumisse ao seu redor e tudo se escurecesse de uma vez.
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Delírio | Criaturas Celestiais
Fantasía•Criaturas Celestiais | Livro Um• "Garotas mortas ainda podem amar." Muitos consideram a morte como um descanso, um fim tranquilo depois de uma vida agitada, mas a morte foi apenas o começo das complicações para Clarissa. Quando Clarissa Byers...