O restaurante da pousada estava fora de cogitação porque ficava de frente para a piscina e eu não queria que meus olhos mais uma vez avistassem inevitavelmente aquela deusa em forma humana. Ou melhor, não queria que os olhos do seu namorado nervoso me encontrassem.
Entrei em um restaurante a quilo perto da praia. Estava meio vazio pelo horário, mas a comida tinha boa aparência. Sentei-me com um prato de 500 gramas e chamei a atendente gordinha para trazer um refrigerante. Ela se aproximou e notei belos olhos cor de mel atrás dos óculos fundo de garrafa. Olhando melhor ela era bem bonita por trás daquele uniforme tosco e cabelo com touca.
— Boa tarde, querida. Pode me trazer um guaraná?
— Claro, senhor.
"Na volta falarei dos olhos dela", pensei. Dois minutos depois ela voltou com uma latinha.
— Belos olhos você tem.
— Obrigada — respondeu gentilmente, mas não deu muita bola, deixou o refrigerante e se afastou novamente. Não foi bem o que imaginei. Deve ser crente ou então não quer dar espaço para um dos diversos clientes que dão em cima dela diariamente. Pensando por esse lado posso imaginar uma parte da chateação que é ser uma atendente de restaurante com olhos diferenciados. Na volta pedirei desculpa.
Ali do restaurante eu podia ver um pedaço da praia. Não sei como tem gente no mundo que consegue viver longe do oceano. Não há imagem melhor do que o sol sumindo no horizonte e refletindo no mar.
Acabei de comer e chamei-a novamente.
— Vocês têm o que de sobremesa?
— Picolé e pudim de leite.
— Fica para próxima então. Por acaso você se ofendeu com o que falei?
— Já estou acostumada. Essa época muitos turistas chegam e dão em cima de mim e isso me incomoda — ela falou com naturalidade, como se não fosse a primeira vez que dá tal explicação.
— Desculpa ter passado essa impressão. Realmente quis elogiar seus olhos, sem segundas intenções.
Ela sorriu, mas não pareceu muito convencida, até porque era uma grande mentira. Provavelmente ela não dá importância alguma para a minha existência e só quer ganhar os dez por cento de comissão. Agradeci o atendimento e pedi a conta. Enquanto aguardava ela trazer a máquina de cartão de crédito voltei a admirar o mar até que uma paisagem melhor ainda surgiu à minha frente. Quais as chances disso acontecer? Parecia até que eu estava dentro de um dos livros não-publicados escritos por mim.
Ana levantou o primeiro prato da pilha e pegou o de baixo, uma mania que eu também peguei ao longo de muitas comidas a quilo, evitando sempre o prato do topo. Dessa vez ela não estava de biquíni, infelizmente, agora vestida com short jeans e uma blusa vermelha de alcinha que serviu de apoio para os óculos escuros recém tirados do rosto. Seus cabelos estavam mais lisos do que antes, de quem havia tomado banho, lavado e secado, tirando o sal da praia. Não posso dizer o mesmo do meu que mal vê um pente. Ela começou a colocar a comida no prato até chegar na parte de pesar, sem olhar para os lados, sem saber que eu observava cada movimento seu, os trejeitos, as manias, o jeito de andar, as mãos tentando abanar o calor terrível do restaurante sem ar condicionado em meio ao verão baiano. Terminada a pesagem ela finalmente olhou ao redor, procurando uma mesa vazia até que seus olhos encontraram os meus, dando lugar a uma expressão de surpresa, finalizada com um sorriso.
— Você tá me seguindo é, Henrique de Marte? — disse enquanto se aproximava e sentava com a bandeja bem à minha frente.
— Olha, para minha defesa, meu prato está usado e a menina vai trazer a conta agora. Parece que você está me seguindo, hein?

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E se for tudo um sonho?
Romance"E se for tudo um sonho?" conta a história da vida de Henrique Polyakov, dividida em dois períodos de tempo distintos, um em meados de 2017 e outro no final de 2019. Aficionado em observar pessoas e seus comportamentos, o corretor de imóveis de 32...