— Vai mais devagar, Henrique. Não me faça ficar arrependida de pegar carona com você.
— Estou devagar — falei por impulso, sem prestar atenção na velocidade. Olhei para o velocímetro e vi que estava a 68km/h em uma pista de 70km/h. — Viu que estou dentro do limite, né?
— Diminua para sessenta senão eu pulo para fora desse carro em movimento.
Soltei um pouco o peso do pé no acelerador e observei os outros carros passando pela minha esquerda, nenhum deles respeitando o limite das placas. Dirigindo naquela velocidade em uma pista livre era quase um insulto, mas eu pedi por isso. Restava para mim aproveitar o momento, conversar sobre coisas aleatórias e que não dessem brecha para eu ser analisado a todo momento.
— Como anda a vida amorosa, doutora?
Ela me olhou com uma expressão desconfiada. Engraçado que eu sempre a chamava de doutora de maneira proposital e nada sutil, mas ela não parecia se importar com o vocativo.
— Não precisa me olhar assim — continuei. — Você sabe tudo sobre meus relacionamentos, e eu não sei nada sobre você, a não ser que mora na Avenida Centenário e usa lentes de contato quando não está trabalhando.
— Bom... — começou e logo deu uma breve pausa engolindo seco, pensando, provavelmente, por onde começaria. — Casei com meu melhor amigo, e nos separamos antes de fazer um ano de casamento. Depois disso, não tive nada sério com ninguém, só coisas de uma noite, relacionamentos de Tinder com alguns homens e metade disso com mulheres.
Sabia. Nunca erro nessas coisas.
— Por que terminou o casamento tão rápido? — perguntei de forma intrometida, provavelmente efeito do álcool. Não esperei uma resposta, mas ela parecia disposta a se abrir totalmente naquele momento, como se precisasse falar sobre si e, talvez, desabafar.
— Ele me traiu com a secretária.
— Nossa... tão clichê.
— Minha vida podia muito bem virar um desses filmes bestas de Hollywood. Ele foi um completo idiota, mas o perdoei. Quero dizer, relevei o fato para manter a amizade de anos, já que não poderia mais confiar nele como marido.
— Não é a mesma coisa, é?
— Não. Antes do casamento conversávamos o tempo todo, estávamos juntos todos os finais de semana... e, hoje em dia, só o vejo duas ou três vezes por ano. Se eu for me analisar, posso dizer que criei um bloqueio para relacionamentos, inclusive amizades, depois de ser traída pela pessoa que mais confiava, mas deixo isso para meu psicólogo desvendar e me ajudar a solucionar.
— Não sabia que psicólogos tinham psicólogos.
— Agora pense em um médico indo ao médico. Pense também em um médico ficando doente. É algo para se refletir, não é mesmo? — ela riu da situação e eu fiquei com um nó no cérebro. — Ninguém pode se olhar em terceira pessoa e entender seus comportamentos de "fora da caixa". É necessário uma pessoa externa e isenta para fazer uma análise completa da sua psique. Uma vez, li um livro que relatava muito bem esse tema, mostrando que toda e qualquer história tem dois lados. Era escrito em primeira pessoa, e o narrador, que era o personagem principal, contava a sua versão dos fatos. No fim, era possível enxergar diversos furos na trama que pareciam como erros de desleixo do escritor, mas que, na verdade, faziam parte da visão do "eu lírico" tentando mascarar os fatos, enganar o leitor para tomar partido e o ter como herói, quando na verdade ele era o vilão da história.
— Nunca havia pensado nisso — comentei ainda com um nó na cabeça. Passei direto em um sinal vermelho por causa do horário, mas ela continuou a falar sem ligar mais para minha direção.

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E se for tudo um sonho?
Romance"E se for tudo um sonho?" conta a história da vida de Henrique Polyakov, dividida em dois períodos de tempo distintos, um em meados de 2017 e outro no final de 2019. Aficionado em observar pessoas e seus comportamentos, o corretor de imóveis de 32...