II

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Caminhei descalço pela areia quente até a beira do mar revolto. O sol naquele horário queimava minha pele com facilidade, então eu tinha que entrar o mais rápido possível na água para parar de arder. Dessa vez, não precisei me preocupar com chaves do carro, trazendo apenas celular, que deixei enrolado pela camisa na areia, onde eu sabia que ninguém passaria para me roubar. Deixei todo o resto dentro do quarto da pousada e a chave na recepção para que fosse feita a arrumação do quarto.

A praia de Jacuípe é bem perigosa para os turistas, mas, para quem já a conhece há anos e sabe seus limites, é algo bem tranquilo e até divertido. No mar só estavam alguns surfistas e eu, sem nenhum banhista por perto. Alguns casais sentados em cangas na areia, mas ninguém ousando entrar na água. Após alguns mergulhos, voltei para a areia e fiquei assistindo aos surfistas fazerem diversas manobras nas pranchas. Um deles devia ter menos de 18 anos e fazia coisas que os outros nem sonhavam em fazer. Subia, descia, girava, entrava na água como se tivesse afundado e logo saía fazendo alguma outra peripécia. Um verdadeiro aprendiz de Gabriel Medina em águas baianas.

À minha direita, observei um casal abraçado conversando. Vez ou outra começavam a rir bastante e acabavam se beijando. Engraçado que ela estava toda tatuada e ele não tinha nenhuma. Consegui contar cinco no corpo dela só pela posição que estava e nele não vi nenhuma. Ele bem branquelo como eu, ela queimada de sol. Os dois bem jovens tinham uma conexão perfeita, que pude perceber na forma como se olhavam e nos toques um no corpo do outro, como se já se conhecessem há muitos anos, e isso me invejou um pouco. Um pouco não, muito. Em não muito mais que um ano de namoro com Fernanda, entre idas e vindas, nunca senti como se estivéssemos sintonizados, diferentemente desse casal. Nós nos dávamos muito bem na cama, e ela conseguia me acompanhar na cachaça, mas sóbrios, e após o sexo, não havia nada, por isso os invejo tanto. Será que o meu destino é ser frustrado? Ganhar o suficiente para ter uma vida de classe média, com um trabalho que não gosto, e namorar mulheres que não me oferecem o tanto quanto quero oferecer a elas? É... amante não tem lar.

Adquiri personagens suficientes para uma tarde só. Hora de comer alguma coisa e depois retornar à toca. No caminho de volta, resolvi parar no bar que vi os dois senhores conversando no primeiro dia que cheguei. Eles estavam lá, os dois coroas, juntos com mais um, tomando cerveja os três. Peguei o cardápio e vi que fritavam pastel na hora, queijo e presunto por cinco reais com suco de acerola. Pedi um e me sentei em uma cadeira perto dos senhores.

— Já estava na hora dele mesmo, que descanse em paz — disse o coroa à esquerda, fazendo o sinal da cruz com a mão direita.

— Um bom sacana ele era. Ficou me devendo 800 reais e morreu sem pagar — disse o segundo senhor, o único com cabelos na cabeça.

— Ele era um bom homem, não fale desse jeito. Tinha uma vida difícil, seis filhos para criar... Não sei como a mulher dele vai aguentar tudo sozinha agora — disse o terceiro.

— Ela também é outra que não vale o prato que come — esbravejou o segundo. — Os dois se mereciam.

— Calma, Zé. Por que tá falando isso? — perguntou o primeiro.

— Você não sabia — disse em tom mais calmo. — Ele a pegou na cama com outro no dia do aniversário dele.

— Ah, era só isso? — riu o primeiro. — Quem nunca tomou chifre que atire a primeira pedra.

Os três riram e continuaram falando mal da vida do finado. Sem querer, já adquiri mais alguns personagens e uma história inteira sobre a vida de um corno devedor que deixou mulher e seis filhos para trás. Pelo que entendi do resto da conversa, um dos filhos parece mais com o vizinho do que com o pai, então digamos que deixou cinco. Até prestaria mais atenção, mas meu pastel chegou para disfarçar minha fome até de noite.

E se for tudo um sonho?Onde histórias criam vida. Descubra agora