V

25 4 1
                                    

Tenho um problema que me acompanha há alguns anos: a dificuldade de dormir em terreno alheio. Até me acostumar com uma cama nova, são pelo menos três noites sem dormir, e nesse dia não seria diferente. Rolei por dentro do edredom com o ar condicionado gelando forte a 19°, condições perfeitas para uma boa noite de sono, só que elas não acompanhavam a minha própria condição de esquisito, primeiro porque minha cabeça girava no ritmo do álcool e segundo por causa da fidelidade à minha própria cama. Olhei o celular e percebi que tinha passado mais tempo rolando sobre os lençóis do que o normal. Sem sono, levantei e caminhei pelo corredor longo e escuro até chegar à geladeira. A famigerada garrafa de Vinho Château estava lá, elegante e arrumada, assustada ao me perceber olhando-a com expressão curiosa. Os outros alimentos logo perceberam minha presença e se fingiram de mortos em silêncio absoluto até que o pacote de salame percebeu que havia chegado sua hora.

Dirigi-me até a varanda, coloquei um copo d'água sobre a mesinha de madeira e me sentei sobre a confortável cadeira acolchoada. O celular apitou falta de bateria, porém ainda restava o suficiente para colocar uma musiquinha em volume baixo e me deliciar com pedaços de salame enquanto observava os raros carros que passavam voando pela avenida. Coloquei uma playlist com músicas aleatórias do Spotify e bolei um desafio para mim mesmo, que consistia em ouvir as músicas novas até o fim, sem passar para a próxima. A primeira que começou a tocar na playlist "descobertas da semana" foi "Free Fallin'" de John Mayer, uma das minhas favoritas. Não sei qual o algoritmo que foi utilizado pelo aplicativo para considerar o cantor que mais ouço como algo novo, mas gostei. Provavelmente porque fazia tempo que não ouvia suas músicas, se bem que até combinava com aquele momento melancólico em uma noite que bebi para esquecer o término de namoro e acabei na casa da minha psicóloga — em quartos separados, é bom frisar.

Para fechar a depressão minimalista às 2:37 da madrugada, comecei a observar as luzes acesas de um prédio imenso do outro lado da avenida. Consegui contar o sétimo andar e o décimo terceiro com luzes acesas e pessoas andando pela casa. No vigésimo quinto, o penúltimo andar, alguém aparentava estar apoiado na barra de ferro da varanda com as luzes fracas, mas, pela distância, não consegui ter certeza. Isso me fez pensar que eu poderia muito bem morar em uma varanda como aquela, com a mesma alegria de um cego que voltou a enxergar.

Enchi o copo d'água com a garrafa de vidro que havia levado, e a segunda música começou a tocar. Era uma música da Banda do Mar que eu não conhecia, incrivelmente. Achei que já tinha ouvido todas as músicas do grupo, por isso tive que desbloquear o celular e verificar o nome, "Vamo Embora". É, Spotify, você mandou muito bem nesse negócio de descobrir novas canções. O refrão ficou na minha cabeça e tive que repetir duas vezes, transformando aquela experiência em algo que duraria quase quinze minutos caso eu não tivesse sido interrompido.

— Henrique? — perguntou uma voz arrastada atrás de mim. — Que susto da porra!

— Desculpa, Doutora. Não consegui pegar no sono.

Peguei o celular rapidamente e abaixei o volume antes que fosse expulso daquele projeto de palácio. Em seguida, voltei-me para trás e pude ver melhor o que se passava. Priscila vestia uma blusa cinza de baby doll e algo não identificável embaixo, usando somente o que poderia ser muito bem uma calcinha ou um shortinho curto de dormir.

— Pode continuar ouvindo sua música, não foi isso que me acordou. Quase sempre levanto de madrugada para fazer xixi e beber água.

— É um comportamento que pode ser investigado. Como é a relação com seus pais?

— Você está me imitando?

— Longe de mim — respondi com entonação irônica.

Ela riu e sumiu no escuro por alguns segundos até a luz da geladeira a iluminar inclinada procurando algo. Encheu um copo com água e veio até mim novamente.

— Você pegou a garrafa de água.

— E um pacote de salame. Depois eu pago.

— Mexeu no meu vinho?

— Olha, agora que você mencionou, acho plausível fazermos uma degustação aqui na varanda.

— Eu costumava fazer o mesmo que você está fazendo quando morava aqui com meus pais. Pegava uma cadeira e ficava ouvindo música sozinha com uma garrafa de vinho na mão, observando o movimento dos carros, tentando imaginar quantos deles estavam acima do limite de velocidade...

Priscila começou a relembrar momentos nostálgicos de alguns anos atrás que poderiam ser até interessantes em uma situação diferente daquela, em que não existisse a opção de tentar desvendar o mistério da roupa que usava, se estava de calcinha ou short curto. Seus pensamentos eram tão distantes que ela mal me olhava enquanto sua boca tagarelava centenas de palavras por minuto. A ideia de tomar um vinho com ela e conseguir fechar a noite com um sexo feroz me parecia cada vez mais interessante, como se suas palavras — que entravam por um ouvido e saíam pelo outro — fossem um estímulo sexual, mas não eram. Desde que a conheci, tentei decifrar o que havia de atrativo naquela mulher baixinha que escondia a beleza com adornos e óculos de nerd. Durante todas as consultas, abri-me como nunca havia feito antes e acreditei que a razão era unicamente por estar diante de uma profissional, porém a realidade era diferente e vinha como um soco no rosto. Talvez estivesse domado pela imagem de uma mulher mais inteligente, com um currículo e poder aquisitivo maiores que o meu, mas também não era isso. Nesse momento, notei que aquele corpo em tamanho miniatura me deixava louco de tesão e descobrir se ela estava vestindo calcinha ou short era a coisa mais irrelevante que passou pela minha cabeça nos últimos meses. O que eu deveria desvendar é o que estava por debaixo daquela peça de algodão, se estava lubrificada pela minha presença ou não. Se ela estava se segurando para não pular em cima de mim, com as mãos atadas por medo de ser descoberta ao infringir o código de ética. Ou será que era isso que eu queria? Uma ilusão em que tento justificar o fato de ela não ter me dado bola com o possível enfrentamento diante de uma Comissão de Ética. A rejeição era tão fato como a minha vontade de possuí-la, de tirar aquela calcinha, short, ou o que fosse, e passar minha língua em sua boceta.

Muitas questões passaram pela minha cabeça enquanto Priscila terminava de contar sobre os seus pais e sua infância. Finalmente houve silêncio, agora com o meu celular descarregado e com a ausência daquela voz feminina e faladora. O tempo em pé pareceu trazer dor nas pernas e consigo a lembrança de que estava diante de um paciente com roupas impróprias por longos minutos.

— Você nem para me avisar que eu estava de calcinha esse tempo todo... — disse Priscila enquanto puxava a cortina da sala para se enrolar.

Mal sabia ela que, ultimamente, eu estava enxergando bem pouco. Preciso marcar uma consulta com um oftalmologista.

— Boa noite, Henrique — disse logo em seguida. — Durma bem... quando for.

— Vou em um instante. Boa noite, Priscila — insisti em chamá-la pelo próprio nome, afastando as formalidades.

Ela saiu com as duas mãos tapando a bunda e sumiu no corredor. Terminei de comer a última fatia de salame, guardei a garrafa d'água dentro da geladeira e fiz o percurso ao longo do corredor até parar de frente para a porta do quarto que me foi indicado. Passei direto e andei até o final do corredor, girando a maçaneta destrancada do quarto da minha psicóloga, que estava em pé, de frente para o ar condicionado com o controle da mão, ajustando a temperatura ou velocidade do vento. Minha presença não foi notada de imediato, somente quando andei metade do caminho até seu corpo, que agora não parecia tão pequeno quanto anteriormente. Dessa vez não tentou esconder a seminudez e muito menos fazer menção de dizer algo repressivo, a não ser uma frase com a voz baixa:

— Apaga a luz e fecha a porta para não sair o ar.

E se for tudo um sonho?Onde histórias criam vida. Descubra agora