Aviso de gatilho: disforia de gênero.
O novo trabalho de Bakugou podia não ter a mesma ação do antigo, porém era definitivamente mais cômodo e supostamente mais tranquilo. Como não podia mais sair as ruas para patrulhar devido ao riscos de se envolver em algum incidente que poderia por em risco sua vida e de seus filhos, ele ficou a cargo do assessoramento das ligações e chamadas de emergência.
Leia-se: trabalho de escritório burocrático e infinitamente enfadonho.
O mais emocionante que poderia acontecer naquele espaço era alguns de seus colegas de sofrimento topar com o dedinho em alguma quina de mesa ou espirrar. Do resto era tal qual uma central de atendimento e marketing, com pessoas atendendo telefonemas de civis e policiais e repassando a informação aos heróis em campo. A parte boa é que a equipe se dividia em duas porções: as pessoas que já conhecia, e as que aprendeu a suportar, porém lhe respeitavam e não o olhavam de maneira torta por ser um homem trans grávido. Assim ele podia transitar e se relacionar com os demais sem se importar com os olhares julgadores, ainda que a imagem de seu ventre de quase sete meses ainda o incomodasse.
Ainda que estivesse seguro de olhares alheios e confortável em sua cadeira, podendo descansar os pés em outra, com um recosto para suas costas agradável e macio, ele não podia se dizer cem por cento satisfeito. Saudoso de toda a adrenalina do campo de batalha, ele ansiava o retorno tanto quanto o fim daquela gestação que já lhe consumira todo o estoque de bom humor e paciência para uma vida inteira.
No horário do almoço, Eijiro chegava sempre para lhe acompanhar, trazendo a refeição que sua mãe passou a fazer, tão ou mais insossa quanto as do ruivo. Bakugou havia apenas aceitado sua realidade, tanto que seu paladar sofreria por mais tempo, quanto que o esposo estava ali para se certificar de que ele não sabotaria a comida com nenhum tempero surpresa, ou deixaria de comer por não gostar.
Assim ele levava os dias atendendo a chamadas e se espreguiçando na cadeira, a espera do esposo que lhe traria sua refeição de cadeia, vez ou outra alisando o ventre para acalmar os filhos que se mostravam mais e mais agitados a cada dia, tentando lidar com sua disforia da melhor maneira possível.
Não era perfeito, mas era sustentável.
Até o dia em que se deparou com uma situação que o deixou mais do que irado. Um engraçadinho havia ligado apenas para zombar de sua identidade de gênero, o que o tirou do sério e o deixou transtornado. Foi difícil se acalmar depois de ouvir dezenas de ofensas gratuitas disfarçadas de piadas, antes de encerrar a ligação na cara do infeliz. Como havia sido um incidente isolado, ele resolveu ignorar e deixar para lá, ainda que todas as palavras ainda ecoassem em sua mente, insuflando sua disforia.
Infelizmente o caso começou a ficar recorrente e logo estavam recebendo não somente ligações, como também e-mails, cartas e vídeos de todos os modelos, desde trocadilhos, paródias, montagens ao conteúdo realmente ofensivo.
"E aí, quem é o homem da relação?"
"Dizer que é homem é fácil quero ver ter um pau para mostrar"
"Volta para o hospício, maluca. Você é tão homem quanto eu sou astronauta"
"Hoje eu estou igual o Ground Zero, sem saco para nada"
"Deus vai mandar você pro inferno, sua idiota!"
"O Red Riot é cego ou o quê para namorar você? Ele diz que é gay e namora mulher, será que não sabe a diferença entre um homem e trap?"
"No dia que encontrar um cara que te coma de verdade vai parar com essas frescuras. Se quiser eu posso fazer esse favor pra você "
"Os seus filhos vão crescer lesados porque a mãe se veste como um homem. Não pensa neles não?"
"Se fosse filha minha não ia nem começar com essas ideias de gente desmiolada. Eu ia dar uma surra para consertar"
Todas aquelas palavras o machucaram com tamanha potência que sentiu-se desmoronar por dentro, frágil como não se sentia a muito tempo, principalmente por perceber que ele não havia sido o único remetente dessa vez, mas que todos os demais funcionários receberam, em suas caixas de entrada, os mesmos comentários, acompanhados de montagens de algumas de suas fotos pessoais, arquivos que ele não disponibilizava para o público, mantendo no privado.
Aquela pequena constatação fez com que uma corrente elétrica perpassasse por sua espinha, causando-lhe um início de ataque de pânico que ele tentou driblar ao respirar compassadamente.
O pior no entanto, veio quando ele conseguiu coragem para erguer os olhos do monitor. Ao olhar para os lados, Bakugou sentiu-se observado por olhos curiosos e cheios de piedade como se ele fosse algum animal especial com alguma anomalia.
Havia tanto tempo que não se sentia visto daquela maneira, sendo dissecado pelos olhares dos demais que sua primeira reação foi a mais imprevisível de todas, algo que não acontecia há anos.
Travou, entregando-se a negatividade daquelas palavras.
Sentado na cadeira mal conseguia se mover, fitando o monitor mais uma vez sem conseguir desviar o olhar e as lágrimas descendo rápidas pelas bochechas enquanto remoía cada insulto, e o sentimento de disforia que se agigantou dentro de si, esmagando sua autoconfiança como se fosse uma pedra enorme, esfacelando suas convicções. Sua disforia havia alcançado o limite aceitável, o que o deixou desconfortável.
Tantas ofensas gratuitas, cheias de preconceito e raiva acabaram por minar por completo o pouco de autoconfiança que o loiro ainda tinha dentro de si.
Os demais já começavam a se movimentar e organizar ao redor, ainda incertos sobre como deveriam proceder, totalmente surpresos pela reação dele. Alguns se posicionaram, conversando em como deveriam se aproximar por temer a natureza instável do loiro e as consequências que uma abordagem errada poderia trazer. A solução foi desligar os monitores em respeito e ligar para Eijiro que saberia lidar com o problema.
Katuski se sentia inferior e terrivelmente estranho, tentando conter os lábios trêmulos e a respiração que quebrava, ainda que fosse impossível controlar as lágrimas. Qual era o problema de todos aqueles babacas, afinal? Porquê não o deixavam em paz?
Preparou-se para se levantar e tomar um copo de água ou qualquer coisa que o acalmasse quando um novo e-mail chegou, aparecendo nas notificações. Sem pensar muito na razão que o levava a abrir aquele novo correio depois dos últimos que recebera ele o abriu, lendo o conteúdo com os olhos baços de lágrimas.
Passaram-se segundos para que seus dedos pressionassem com força o mouse, quase se fincando no acrílico antes dele literalmente explodi-lo. Meio desajeitado e com a respiração trêmula e os olhos injetados de raiva ele se levantou, esquivando das tentativas dos demais colegas de contê-lo.
Sem pensar muito ele saiu, com o rosto vermelho e furioso, batendo as portas e xingando, tão nervoso que não era capaz de raciocinar acerca dos riscos aos quais estava se submetendo ao aceitar aquela provocação.
No monitor a mensagem ainda era visível e causou alvoroço entre os demais.
"Espero que esteja curtindo toda a sua 'fama', SENHORA Ground Zero, afinal foi isso que sempre desejou não é? Ser RECONHECIDA. Fui eu quem mostrou ao mundo a sua verdadeira face, sua MENTIROSA. Se quiser conversar, estou te esperando no lugar onde nos conhecemos pela primeira vez, você se lembra não é PUDIM DOURADO? Venha me ver e talvez eu pare com as mensagens"
Com amor do Idiota Ranhento.
Ninguém foi capaz de conter o loiro que entrou no carro dando partida e arrancando velozmente, ansioso para arregaçar a cara do desgraçado.
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Vamos orar e torcer para dar tudo certo. Amo vocês e se hidratem, meus anjos.
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Nosso Segredo (Livro 1/Concluído)
FanfictionDepois de muito se dedicar a sua carreira, Bakugou conseguiu se tornar um dos heróis mais importantes do mundo. Casado há cinco anos com Kirishima, ele se sentia otimista por seus planos estarem todos dando certo, afinal só havia um detalhe que pode...